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APOFTEGMAS DO ABADE ARSÊNIO

1. Quando ainda morava no palácio, o Abade Arsênio roga a Deus dizendo: «Senhor, dirige-me de modo que seja salvo». E desceu a ele uma voz que dizia: «Arsênio, foge dos homens, e serás salvo».

2. O mesmo, tendo-se retirado para a vida solitária, orou de novo, proferindo a mesma prece. E ouviu uma voz que lhe dizia: «Arsênio, foge, cala-te, está tranquilo, pois estas são as raízes da impecância».

3. Certa vez apresentaram-se os demônios ao Abade Arsênio na cela, atormentando-o. Ora os que lhe serviam, tendo-se aproximado e ficando fora da cela, ouviram-no clamar a Deus e dizer: «õ Deus, não me abandones; nada fiz de bom em tua presença; mas, conforme a tua bondade, concede-me lançar o princípio».

4. Diziam a respeito dele que, assim como no palácio ninguém trajava veste melhor do que ele, assim também na igreja ninguém se apresentava com veste mais vil do que ele.

5. Disse alguém ao bem-aventurado Arsênio : «Como é que nós nada temos (de bom) em conseqüência de tanta erudição e sabedoria, ao passo que estes, os camponeses e egípcios, possuem tão grandes virtudes?» Respondeu o Abade Arsênio : «Nós pela erudição do mundo nada temos, enquanto estes, os camponeses e egípcios, pelo próprio labor é que adquiriram as virtudes».

6. Certa vez o Abade Arsênio interrogava um ancião egípcio a respeito de seus pensamentos ; outro, vendo-o, perguntou: «Abade Arsênio, como é que tu, que possuis tanta erudição romana e grega, interrogas este campônio a respeito dos teus pensamentos?» Disse-lhe Arsênio: «Possuo, sim, a erudição romana e grega; o alfabeto, porém, deste campônio, ainda não o aprendi».

7. Certa vez o bem-aventurado arcebispo Teófilo, acompanhado de um magistrado, foi ter com o Abade Arsênio. Pedia ao ancião que lhes desse a ouvir uma palavra. Após breve intervalo de silêncio, o ancião respondeu-lhe: «E, se eu vos disser a palavra, guardá-la-eis?» Prometeram guardá-la. Disse-lhes então o ancião: «Onde quer que ouvirdes estar Arsênio, não vos aproximeis de tal lugar» 1.

8. Outra vez, querendo de novo o arcebispo ir ter com ele, mandou primeiro saber se o ancião abriria. Este respondeu-lhe: «Se vieres, abrirei para ti; e, se abrir para ti, hei de abrir para todos; em tal caso, porém, não mais me quedarei aqui». Tendo ouvido isto, disse o arcebispo: «Se é para expulsá-lo que o vou procurar, não mais o irei procurar».

9. Um irmão pediu ao Abade Arsênio que lhe desse a ouvir uma palavra. Disse-lhe o ancião: «Com toda a força que tens, luta para que a tua labuta interior seja conforme Deus, e vencerás as paixões exteriores».

10. Disse também : «Se procurarmos a Deus, aparecer-nos-á; e, se o guardarmos, permanecerá conosco».

11. Disse alguém ao Abade Arsênio : «Os meus pensamentos me afligem sugerindo-me : ‘Não podes jejuar nem trabalhar; ao menos sai a visitar os doentes, pois isto é caridade’». O ancião, que conhecia as sugestões dos demônios, disse-lhe : «Vai, come, bebe, dorme e não trabalhes; apenas não deixes a cela». Sabia, com efeito, que a perseverança ña cela coloca o monge na sua ordem devida.

12. Dizia o Abade Arsênio que o monge estrangeiro em terra alheia em nada se deve imiscuir; desta forma encontrará sossego.

13. O Abade Marcos perguntou ao Abade Arsênio: «Por que foges de nós?» Respondeu-lhe o ancião: «Deus sabe que vos amo; não posso, porém, estar com Deus e com os homens. Os milhares e as dezenas de milhares de espíritos supernos têm uma só vontade, enquanto os homens têm muitas vontades. Não posso, por conseguinte, deixar Deus e vir para junto dos homens».

14. Dizia o Abade Daniel, a respeito do Abade Arsênio, que este passava a noite inteira em vigília; quando, ao despontar do dia, por exigência da natureza, chegava a dormitar, dizia ao sono: «Vem, servo mau!» Então, sentado, dormia um pouquinho, e logo se levantava.

15. Dizia o Abade Arsênio que ao monge basta dormir uma hora, se, de fato, é um lutador 2.

16. Diziam os anciãos que certa vez foram doados aos solitários da Cétia alguns poucos figos secos; já, porém, que não pareciam de valor nenhum, não mandaram parte ao Abade Arsênio, intencionando poupar-lhe uma ofensa. O ancião, tendo ouvido isto, não compareceu à sinaxe 3, alegando: «Vós me excomungastes, não me fazendo chegar a dádiva que Deus mandou aos irmãos, por não ser eu digno de a receber». Ouviram todos e se edificaram pela humildade do ancião. O presbítero então foi-lhe buscar os figos, e levou-o com alegria para a sinaxe.

17. Dizia o Abade Daniel: «Tantos anos permaneceu conosco e somente um tálio 4 de alimento lhe preparávamos por ano; e ainda, quando íamos ter com ele, comíamos desse tálio».

18. O mesmo dizia ainda a respeito do Abade Arsênio que só uma vez por ano mudava a água das folhas de palmeira; fora disto, apenas acrescentava nova água à água usada; de resto, trançava, corda e cozia até a hora sexta. Ora os anciãos exortaram-no, dizendo: «Por que não mudas a água das palmas, já que exala mau odor?» Respondeu-lhes : «Porque, em lugar dos perfumes e aromas de que gozei no mundo, é preciso que eu agora absorva tal cheiro» 5.

19. Contou ainda que, quando o Abade Arsênio ouvia estarem maduras as frutas das diversas árvores, dizia espontaneamente: «Trazei-mas». E provava, uma vez apenas, um pouquinho de cada qual, dando graças a Deus.

20. Certa vez o Abade Arsênio, tendo adoecido na Cétia, sofria a indigência até mesmo de uma camisa de linho. Não tendo recurso para comprá-la, aceitou de alguém uma esmola, e disse: «Agradeço a ti, Senhor, que me tenham tornado digno de receber uma esmola em teu nome».

21. A respeito dele diziam que tinha a cela afastada à distância de trinta e duas milhas. Não saia com facilidade; outros lhe prestavam os serviços necessários. Depois, porém, que fora devastada a Cétia, saía em prantos e dizia: «O mundo perdeu Roma, e os monges perderam a Cétia !»

22. O Abade Marcos perguntou ao Abade Arsênio: «Não será bom que alguém não tenha em sua cela algum objeto que o console? Pois vi um irmão que possuía pequenas hortaliças e estava a arrancá-las». Respondeu o Abade Arsênio : «É bom, sim ; de acordo, porém, com o temperamento do homem ; pois, se ele não recobrar forças neste gênero de vida solitária, voltará a plantar outras coisas» 6.

23. O Abade Daniel, o discípulo do Abade Arsênio, narrou: «Certa vez, encontrando-me eu perto do Abade Alexandre, acometeu-o uma dor, em virtude da qual ele se estendeu por terra, olhando para o alto. Aconteceu, então, que o bem-aventurado Arsênio se chegou para lhe falar, e o viu estendido. Tendo terminado de falar como intencionava, ainda acrescentou: «E quem era o secular que aqui vi?» Perguntou o Abade Alexandre: «Onde o viste ?» Respondeu : «Quando eu descia da montanha, olhei aqui para a gruta, e vi alguém estendido a fitar o céu». Alexandre atirou-se-lhe, então, aos pés, dizendo o seu arrependimento: «Perdoa-me, era eu; pois a dor me dominava». Respondeu-lhe o ancião : «Então eras tu ? Está bem. Julguei que fosse um secular; por isto é que perguntei».

24. De outra feita disse o Abade Arsênio ao Abade Alexandre: «Quando tiveres acabado de cortar os teus ramos de palmeira, vem comer comigo; se, porém, chegarem peregrinos, come com eles». Ora o Abade Alexandre trabalhava num ritmo sempre igual e lento. Vinda a hora de comer, ainda tinha ramos por cortar; querendo cumprir a ordem do ancião, resolveu acabar primeiramente Os seus ramos. O Abade Arsênio, então, vendo que tardava, comeu; julgava que talvez lhe tivessem ocorrido peregrinos. Quando à tarde terminou o seu trabalho, o Abade Alexandre foi-se. Perguntou-lhe então o ancião : «Recebeste hóspedes ?» – «Não». – Por que então não vieste ?» – «Porque me disseste: ‘Quando acabares de cortar os teus ramos, vem’. Ora, observando a tua ordem, não vim, pois há pouco é que terminei o trabalho». O ancião admirou a fidelidade do discípulo e disse-lhe: «Rompe logo o jejum, para que digas o teu ofício e tomes a tua água; se assim não fizeres, em breve adoecerá o teu corpo».

25. Certa vez chegou o Abade Arsênio a um lugar onde havia caniços, que o vento agitava. Disse então o ancião aos irmãos : «Que agitação é essa?» Responderam-lhe: «É de caninos». Acrescentou o ancião: «Se alguém que está tranquilamente sentado, ao ouvir o canto de um pardal, não conserva a mesma tranqüilidade era seu coração, quanto mais vós não vos conservareis tranqüilos, tendo ao lado a agitação desses caniços ?»

26. Contava o Abade Daniel que alguns irmãos, devendo ir à Tebaida 7 por motivo de fios de linho, haviam dito : «Dada a ocasião, vejamos também o Abade Arsênio». Ora o Abade Alexandre entrou, e referiu ao ancião: «Irmãos vindos de Alexandria querem ver-te». Respondeu o ancião : «Pergunta-lhes por que razão vieram». Informado de que tinham ido à Tebaida por motivo de fios de linho, comunicou isto ao ancião. Este respondeu : «Sem dúvida, não hão de ver a face de Arsênio, pois não por causa de mim, mas por causa do seu trabalho é que vieram. Faze-os repousar e, a seguir, despede-os em paz, dizendo-lhes que o ancião não pode receber».

27. Certo irmão foi ter à cela do Abade Arsênio na Cétia, e, olhando pela porta, viu o ancião como que todo em fogo; tal irmão era digno de ver isto. Quando o mesmo bateu, apareceu o ancião e notou que o irmão estava como que terrificado. Perguntou-lhe então : «Há muito tempo que estás batendo? Viste alguma coisa aqui dentro?» Respondeu: «Não». Puseram-se, pois, a conversar e, a seguir, Arsênio o despediu.

28. Quando certa vez o Abade Arsênio morava em Canopo, chegou de Roma, para vê-lo, uma virgem de linhagem senatorial, muito rica e temente a Deus. Acolheu-a o arcebispo Teófilo, ao qual ela pediu que convencesse o ancião de a receber. Teófilo, indo ter com o Abade, rogou-o nestes termos: «Tal jovem de família senatorial veio de Roma e quer ver-te». O ancião, porém, não consentiu em recebê-la. Quando isto lhe foi anunciado, ela mandou arrear os cavalos, dizendo: «Confio em Deus que hei de o ver. Pois não foi para ver um homem que vim, já que também na nossa cidade há muitos homens; mas foi para ver um profeta que vim». E, quando chegou às proximidades da cela do ancião, este, por disposição de Deus, passava alguns momentos de lazer fora da cela. Vendo-o, ela caiu-lhe aos pés. Este levantou-a com indignação, e fitou-a dizendo: «Se queres ver o meu semblante, ei-lo; olha». Ela, porém, tomada de confusão, não fixou o rosto do ancião. Disse então Arsênio: «Não ouviste falar das minhas obras? Para estas é que é preciso olhar. Como ousaste fazer tão longa viagem por mar? Não sabes que és mulher? Para parte nenhuma e em tempo nenhum deves sair. Ou será que vieste, para que, voltando a Roma, possas dizer ¡as outras mulheres: ‘Vi Arsênio’; e façam do mar a via de mulheres que venham ter comigo?» Ela respondeu: «Se aprouver ao Senhor, não permitirei que alguém venha.aqui; mas reza por mim, e recorda-te sempre de mim». Em resposta disse ele: «Peço a Deus que apague de meu coração a recordação de ti». Tendo, ouvido isto, ela se foi perturbada; e, quando chegou à cidade, incidiu em febre, dada a sua tristeza. Foi então referido ao bem-aventurado Teófilo arcebispo que ela estava doente. Indo ter com ela, este perguntou-lhe o que tinha. Ela explicou: «Oxalá não tivesse vindo aqui; pois disse ao ancião: ‘Lembra-te de mim!’, e ele respondeu-me: ‘Rogo a Deus para que de meu coração se apague a recordação de ti’. Eis que agora morro desta tristeza». Disse-lhe o arcebispo: «Não sabes que és mulher, e que pelas mulheres o inimigo combate os santos? Por isto é que o ancião falou de tal forma. Pela tua alma, porém, ele rezará sempre». Assim se tranqüilizou o espírito da virgem, a qual com alegria voltou para a sua pátria.

29. Narrou o Abade Daniel a respeito do Abade Arsênio que certa vez foi ter com ele um magistrado. Este lhe levava o testamento de um seu parente, de linhagem senatorial, o qual lhe deixava uma herança muito avultada. Arsênio, tendo-se apoderado do testamento, queria rasgá-lo. Então o magistrado caiu-lhe aos pés, dizendo: «Rogo-te, não o rasgues, pois que me seria cortada a cabeça». Respondeu-lhe o Abade Arsênio: «Eu morri antes dele; ele morreu há pouco». E mandou de volta o testamento, sem aceitar coisa alguma.

30. Diziam também a respeito dele que, no fim do sábado, quando começava a luzir o domingo, deixava o sol atrás de si e estendia as mãos ao céu em oração, até que de novo brilhasse o sol sobre a sua face. Desta forma vivia ele 8.

31. Diziam do Abade Arsênio e do Abade Teodoro de Fermes que, mais do que todos, odiavam a glória dos homens. Por conseguinte, o Abade Arsênio não recebia facilmente alguém; o Abade Teodoro recebia, sim, mas apresentava-se como uma espada.

32. Quando o Abade Arsênio residia nas regiões do Egito inferior, já que era muito procurado pela gente, julgou bom abandonar tal morada. Sem, pois, levar coisa alguma consigo, foi ter com os seus discípulos faranitas 9 Alexandre e Zoilo. Disse então a Alexandre: «Levanta-te, e entra num barco». Este assim fez. E a Zoilo disse: «Vem comigo até o rio, e procura-me uma nave que desça para Alexandria; a seguir, embarca-te também tu e reúne-te a teu irmão». Zoilo, perturbado por esta ordem, calou-se. Assim se separaram um do outro Arsênio e Zoilo. Por conseguinte, o ancião desceu para a região de Alexandria, onde veio a adoecer gravemente. No entretempo, os seus discípulos diziam um para o outro: «Será que algum de nós entristeceu o ancião, de modo que nos tenha deixado ?» Nada, porém, encontravam em si que os acusasse, nem se lembravam de lhe ter desobedecido alguma vez. Ora, tendo recuperado a saúde, o ancião disse: «Irei para junto de meus Pais». Assim embarcou-se, e foi para a região de Petra, onde se achavam os seus discípulos. Quando, porém, se encontrava perto do rio, uma jovem etíope chegou-se, e tocou a sua melote 10. O ancião repreendeu-a. A jovem replicou: «Se és monge, retira-te para o monte». Então o ancião, compungido por esta palavra, dizia em si mesmo: «Arsênio, se és monge, retira-te para o monte». Nessa hora chegaram-lhe ao encontro Alexandre e Zoilo. Como estes lhe caíssem aos pés, também o ancião se precipitou por terra; de ambas as partes puseram-se a chorar. Arsênio então falou,: «Não ouvistes que estive doente?» Responderam-lhe: «Sim». E o ancião a retrucar: «E por que não me fostes ver?» O Abade Alexandre disse: «A tua partida dentre nós não nos foi proveitosa; muitos mesmo ficaram mal impressionados, dizendo: ‘Se não tivessem desobedecido ao ancião, não se teria ido’». Respondeu-lhes: «De novo, pois, hão de dizer os homens: ‘A pomba não encontrou pouso para seus pés, e voltou a Noé dentro da arca». Desta forma se uniram em boa paz, e permaneceu com eles até o fim da vida.

33. O Abade Daniel referiu ter o Abade Arsênio contado o seguinte, como que falando de ou* trem; talvez, porém, se tratasse dele mesmo: «Estando certo ancião na cela, desceu a ele uma voz que dizia: ‘Vem, mostrar-te-ei as obras dos homens’». Tendo-se, pois, levantado, saiu, e quem falara, levou-o para certo lugar, onde lhe mostrou um etíope que cortava lenha, e fizera um grande fardo; tentava carregar a este, mas não o podia; ora, em vez de tirar algo do fardo, de novo se punha a cortar» lenha, e acrescentava-a à carga. Isto, ele o ia fazendo por muito tempo. Tendo caminhado mais um pouco, aquele que falava, de novo mostrou-lhe um homem colocado ã margem de um lago; hauria água, e derramava-a numa vasilha furada, a qual deixava a água recair no lago. Disse-lhe de novo: «Vem, mostrar-te-ei ainda outra coisa». Viu então um templo e dois homens montados em cavalos; postos um em face do outro, carregavam um lenho atravessado entre ambos; queriam entrar pela porta, mas não o conseguiam, por estar o lenho atravessado; um desses homens não se abaixou diante do outro a fim de colocar o lenho em linha reta; por isto permaneceram do lado de fora da porta. «Estes são», disse, «os que carregam com soberba uma
espécie de jugo de justiça, e não se abaixam a fim de se tornarem retos e caminhar a via humilde de Cristo; por isto permanecem fora do reino de Deus. Aquele que cortava lenha, é o homem réu de muitos pecados, que, em vez de fazer penitência, acrescenta novas iniqüidades aos seus pecados. E aquele que hauria água, é o homem que pratica boas obras, mas, por lhes ter misturado algo de mau, perdeu também as boas obras. É preciso, pois, que todo homem exerça a vigilância sobre as suas ações, a fim de que não labute em vão».

34. O mesmo contou que certa vez alguns dos Padres de Alexandria foram ver o Abade Arsênio; um deles era tio do velho Timóteo, arcebispo de Alexandria chamado «o Pobre», e levava consigo um dos seus sobrinhos. Naquela ocasião o ancião achava-se doente, e não os quis receber, para que também outros não o fossem procurar e o importunassem. Estava então em Petra de Troas. Aqueles se foram, entristecidos. Ora deu-se uma invasão de bárbaros, e Arsênio permaneceu, de espontânea vontade, nas regiões do Egito inferior. Sabendo disto, foram de novo visitá-lo, e Arsênio os recebeu com alegria. Disse-lhe então o irmão que estava com eles: «Não sabes, ó Abade, que te fomos procurar em Troas e que não nos recebestes?» Respondeu-lhe o ancião: «Vós comestes pão, e bebestes água; mas eu, ó filho, em verdade nem pão nem água tomei, nem me assentei, castigando a mim mesmo, até que tive a certeza de que havíeis chegado ao vosso destino, pois por causa de mim vos tínheis fatigado. Contudo, desculpai-me, irmãos!» Eles, consolados, se foram.

35. O mesmo contava: «Certo dia chamou-me o Abade Arsênio, e disse-me: ‘Reconforta teu Pai, a fim de que, quando se for para o Senhor, ore por ti e sejas bem sucedido’».

36. Diziam a respeito do Abade Arsênio que, certa vez, tendo ele adoecido na Cétia, o presbítero o levou para a igreja e o colocou sobre um estrado forrado de peles, pondo pequeno travesseiro debaixo da cabeça dele. Ora um dos anciãos foi visitá-lo, e, vendo-o sobre o estrado com um travesseiro debaixo da cabeça, escandalizou-se, e disse: «Este é o Abade Arsênio? Em tal leito é que repousa?» Então o presbítero, tomando-o à parte, perguntou-lhe: «Qual era teu trabalho em tua aldeia?» – «Eu era pastor». – «Como, então, levavas a vida?» – «Vivia em muita fadiga». – «E agora como levas a vida na cela?» – «Gozo de mais repouso». – «Vês este Abade Arsênio? No século era pai de Imperadores 11, e lhe assistiam mil servos, que se cingiam de cinturões de ouro, traziam todos jóias e vestes de seda, tapetes de grande preço se estendiam sob os seus pés. Tu, ao contrário, como pastor, não tinhas no mundo o bem-estar que tens agora, ao passo que este não tem aqui o luxo de que desfrutava no mundo. Por conseguinte, eis que tu gozas de alívio, enquanto este é atribulado». Aquele, ouvindo tais palavras, foi compungido, e prostrou-se com arrependimento, dizendo: «Perdoa-me, Abade, pequei, pois, sem dúvida, tal é a verdadeira via: este veio para a humilhação, ao passo que eu vim para o alívio». E, edificado, retirou-se o ancião.

37. Um dos padres foi ter com o Abade Arsênio. Quando bateu à porta, o ancião abriu, julgando que era o discípulo que lhe servia. Notando, porém, que outro era o visitante, caiu sobre a face. Este disse-lhe: «Levanta-te, Abade, para que te saúde». Respondeu o ancião: «Não me levantarei, enquanto não te fores». E, rogado durante muito tempo, não se ergueu, até que o visitante partiu.

38. A respeito de certo irmão que fora à Cétia para ver o Abade Arsênio, narravam o seguinte : Entrou na igreja e pedia aos clérigos que lhe fizessem encontrar o Abade Arsênio. Disseram-lhe: «Sossega um pouco, irmão, e hás de vê-lo». O mesmo retrucou: «Nada provarei enquanto não o encontrar». Ora, já que a cela de Arsênio era distante, mandaram um irmão que apresentasse o peregrino. Tendo batido à porta, entraram, saudaram o ancião e sentaram-se em silêncio. Disse então o irmão da igreja: «Eu me vou, rogai por mim». O irmão peregrino, não tendo ânimo para falar ao ancião, disse: «Vou também eu contigo». E saíram juntos. Este rogou então àquele: «Leva-me a ver o Abade Moisés, que foi ladrão». E foram ambos ter com este, o qual os recebeu com alegria e, depois de os haver tratado amigavelmente, os despediu. Disse então o irmão que conduzira o outro : «Eis, levei-te para a cela do estrangeiro e para a cela do egípcio. Qual dos dois te agradou?» Respondeu : «Sem dúvida, agradou-me o egípcio». Ao ouvir o fato, um dos padres orou a Deus nestes termos: «Senhor, faze-me entender isto: um foge por causa do teu nome; o outro recebe no colo por causa do teu nome». E eis que lhes foram mostradas duas grandes naves no rio: numa viu o Abade Arsênio e o Espírito de Deus a navegar em sossego; na outra viu navegar o Abade Moisés e os anjos de Deus, os quais a Moisés davam a comer favos de mel.

39. Contava o Abade Daniel: «Quando o Abade Arsênio estava para morrer, mandou-nos: ‘Não vos preocupeis em fazer ágapes em sufrágio de minha alma 12 ; pois, se pratiquei a caridade (agape); em meu favor, hei de a encontrar’».

40. Quando o Abade Arsênio estava próximo da morte, perturbaram-se os seus discípulos. Disse-lhes então: «Ainda não veio a hora; quando vier, eu vo-lo direi. Hei de ser julgado convosco no tremendo tribunal, caso deis a alguém o meu corpo». Retrucaram: «Que faremos, pois que não sabemos sepultar?» Respondeu o ancião: «Não sabeis passar uma corda em torno do meu pé e levar-me para a montanha?» Era esta a frase habitual do ancião : «Arsênio, porque te retiraste do mundo? De ter falado, arrependi-me muitas vezes; de me ter calado; nunca». Quando estava próximo da morte, viram-no os irmãos a chorar, e disseram-lhe: «Temes também tu, de fato, ó Pai?» Respondeu-lhes: «Na realidade, o temor que nesta hora experimento, me acompanha desde que me tornei monge». Nestes termos adormeceu.

41. Diziam que, durante todo o tempo de sua vida, estando ele sentado a fazer seu trabalho manual, tinha um pedaço de pano sopre o peito por causa das lágrimas que lhe corriam dos olhos. Tendo ouvido que morrera, disse o Abade Poimém em prantos: «Feliz és tu, Abade Arsênio, pois choraste a ti mesmo aqui neste mundo ; com efeito, aquele que não chora a si mesmo aqui, lá para sempre há de chorar. Portanto, seja aqui por espontânea vontade, seja lá por causa dos tormentos, ê impossível não chorar».

42. Referiu a respeito dele o Abade Daniel que jamais quis explicar alguma questão da Sagrada Escritura, embora o pudesse se quisesse. Também não era pronto a escrever cartas. Quando, periodicamente, ia à igreja, sentava-se atrás da coluna para que ninguém visse a sua face nem ele olhasse para alguém. O seu aspecto era angélico, como o de Jacó; tinha a cabeleira totalmente branca, o corpo gracioso ; era descarnado ; trazia barba longa, que lhe pendia até o ventre; os cílios
dos olhos lhe tinham caído por tanto chorar. Fora de alta estatura; encurvou-a, porém, a velhice. Chegou à idade de noventa e cinco anos. Quarenta anos passou no palácio de Teodósio Magno, de santa memória, fazendo-se como pai dos digníssimos (príncipes) Arcádio e Honório; na Cétia passou quarenta anos: dez, em Troas na Babilônia superior, diante de Mênfins; três, em Canopo de Alexandria; e, os outros dois anos, ele os viveu de novo em Troas, onde adormeceu, tendo consumado em paz e no temor de Deus o seu curso, porque «era homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé» (Atos 11, 24). «Deixou-me a sua túnica de pele, a sua camisa branca de cilício e as suas sandálias de folhas de palmeira; coisas que eu, embora indigno, usei a fim de ser abençoado».

43. Contou de novo o Abade Daniel a respeito do Abade Arsênio: «Certa vez chamou os meus Pais, os Abades Alexandre e Zoilo, e, humilhando-se, disse-lhes: «Pois que os demônios me assaltam e não sei se no sono me insinuam sorrateiramente, ao menos esta noite lutai comigo e observai se adormeço em vez de vigiar’ E assentou-se um à sua direita, o outro à esquerda, ficando todos em silêncio a partir do anoitecer. Depois disseram os meus Pais: ‘Nós dormimos e nos levantamos, e não observamos se adormeceu. De manhã cedo, porém, (Deus sabe se Arsênio o fez apenas para que julgássemos que adormecera ou se, de verdade, a força do sono o sobrepujou) soprou três vezes e logo se levantou, dizendo: Realmente dormi. Responde: ‘Não sabemos’».

44. Em dada ocasião foram procurar o Abade Arsênio alguns anciãos, que muito insistiram para vê-lo. Arsênio abriu-lhes. E pediram-lhe que lhes dissesse uma palavra a respeito daqueles que vivem em solidão e com ninguém se avistam. Respondeu-lhes o ancião: «Enquanto a virgem está em casa de seu pai, muitos são os que a querem desposar; depois, porém, que outros a louvam, assim já não goza da estima que possuía antes, quando vivia oculta. Tais são também as coisas da alma: se são publicadas, não podem satisfazer a todos».

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