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INTERMEZZO ANGUSTIOSO

Nas linhas que ficaram para trás andamos a perseguir uma definição. Sentindo que ela ficou imperfeita, discutível e abstrata, e que nem de longe recobre o mistério da vida monástica, debruçamo-nos agora sobre os textos que contam as histórias extraordinárias dos monges antigos. Corremos os olhos pelos feitos de um Basílio ou de um Macário; pasmamos diante de um Simeão Stilita no alto de sua coluna; detemo-nos a considerar a luta de um Hilário que durante vinte e tantos anos fustiga as paixões de sua mocidade. Acompanhamos Crisóstomo na sua caverna; Atanásio, no seu exílio; e Marcela, e Paula, e Fabíola as grandes matronas de Cristo; e Jerônimo que impressiona tanto pelo que faz quanto pelo que conta; e tantos outros cujas histórias nos empolgam, nos espantam e – por que não dizer? – nos assustam e nos entristecem. Se muitas vezes essa leitura revigora a alma, noutras vezes, quando menos se espera, por causa de nossa fadiga, ou por termos apostado demais nos recursos da imaginação, sentimos que nos invade uma sufocante tristeza.

 

A julgar por aqueles exemplos, a separação entre o conselho e o preceito nos parece um abismo. O evangelho se parte em dois, como se aqueles loucos tivessem esgotado toda a seiva deixando-nos a palha. O fio da tradição parece partido, pela falta de nexo entre a vida extraordinária dos Padres do Deserto e a vida ordinária que vivemos.

 

Tão grande é a diferença dos meios que nos assalta a desesperada idéia de uma profunda diferença entre os fins. “Muitos serão chamados e poucos os escolhidos”. Como poderá um de nós, na vida familiar, na profissão, na política, – na vida quotidiana apagada e monótona – correr na mesma pista daqueles atletas? Como poderemos aspirar ao mesmo prêmio? Como poderá a mãe de família desejar a mesma coroa de uma Paula, que deixa pátria, família e filhos, para procurar o chão da Terra Santa os traços da passagem de Deus? Como poderá ser medida a perfeição, isto é, o fim, com o mesmo côvado, se é tão desigual a medida dos meios?

 

O monge, a bem dizer, nos assusta ainda mais do que o mártir. O extraordinário deste está na morte; o daquele na vida. O martírio violento e rubro dos perseguidos se nos afigura mais razoável, mais acessível, mais possível, do que o martírio lento e incolor dos solitários. Um circo com leões é mais compreensível do que uma caverna sem leões. Os apupos de uma platéia selvagem, mais suportáveis do que a acabrunhante ausência do contato humano, que até mesmo no ódio nos ampara.

 

Essas reflexões são insensatas. Os evangelhos têm respostas para cada situação da vida; o preceito é santo; os caminhos são vários; as moradas são muitas na casa do Senhor. Mas o fato de lá nos evangelhos estar escrito o convite premente ao caminho mais curto, e o fato histórico e incrível de muitos o terem palmilhado, deixa-nos n’alma uma pesada angústia. Que? Não estaremos nós aqui, com essa escolástica distinção entre preceito e conselho, tecendo sofismas para fugir ao chamado de Deus? Não estaremos nós aqui, como os moços ricos de todas as épocas, a imaginar uma desmesurada agulha ou um microscópico camelo?

 

Ademais, a Igreja instituída por Deus estava completa com os bispos e o povo. Onde inserir o monge na escada de Jacob? Há os pastores e as ovelhas; a hierarquia e os fiéis. Onde meter o monge? De que lado? Em que linhas? Se não têm ordens, é conosco, com os leigos, que estão. Mas, logo reaparece a dificuldade quando observamos que a vida extraordinária dos Padres do Deserto tem tudo, dir-se-ia intencionalmente, para nos separar. O caminho deles nos assusta, não somente por ser íngreme e rápido, mas por sugerir – tamanha é a diferença – um termo diferente. A violência do conselho ataca a essência do preceito, e tudo se afigura como se a perfeição, a caridade, Deus, só pudessem ser atingidos pelas cinzas e pelas macerações e pelas santas extravagâncias dos eremitas.

 

A palavra dos evangelhos, insistentemente gravada em Mateus, em Marcos e em Lucas, soa em nossos ouvidos distantes e vaga como as vozes em sonhos: “si vis perfectus esse…”.

 

E nós – que temos casa, família, filhos, livros, vitrola, etc. – nós voltamos contristados.

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