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“Hoje, eu, irmã Maria Gregória (de Gregório: patrono do canto gregoriano), vestida do meu hábito preto monacal, com o véu que marca a minha face, conto os dias para a minha consagração. Sinto em mim o ardor e as “batidas” do coração de Jesus que anseia pelo meu, numa vida de “ritmo” e uma pertença entusiasta, na qual confesso sentir-me plenamente realizada, vivendo meus votos de: obediência, conversão de costumes e estabilidade.

Tendo completado meu período de noviciado, nesta manhã de domingo laetare (da alegria), dia chuvoso e frio de Petrópolis, percebi o quanto, por amor a Cristo, abandonei as sensações e despojei-me daquilo que era uma alegria finita para uma elevação plena do meu sentir com o mundo.

Recordo-me de todo o caminho percorrido até aqui e, de modo particular, daquele dia em que chegando de um baile funk encontrei uma carta da Madre Gertrudes do Mosteiro da Virgem, de Petrópolis, que me escrevia respondendo aos meus questionamentos sobre a vida contemplativa. São duas folhas de papel pink, preenchidas com uma caligrafia de letra pequena e tinta azul. Estas folhas, que guardo com carinho, eram “a cara” da abadessa petropolitana, que tendo sido nadadora do Flamengo quando jovem, e primeira bailarina do Teatro Municipal, havia largado tudo, inclusive um noivo “mauricinho”, para entrar para o mosteiro.

Lembro-me também, com bastante clareza, das palavras de minha mãe, naquela manhã:

“Muito engraçado! Você me diz que deseja ingressar em um mosteiro beneditino e chega às seis da manhã de um baile funk, sem atender as chamadas que fiz ao celular desde as quatro horas da manhã. Quero saber como é que você vai viver no silêncio de um mosteiro se não consegue ficar longe de suas roupas de grife e de seus CDs. Sem contarem as suas idas a estes bailes, há os passeios ao shopping no qual gasta toda a sua mesada e o pouco dinheiro do seu estágio remunerado.

Veja minha filha: mesmo juntando todos os discípulos de Jesus, ainda faltaria pé para calçar os duzentos e cinqüenta pares de sapatos que você tem. Sem falar no seu cuidado com os cabelos – as freiras costumam ter o cabelo curto – e você sempre com essas escovinhas e luzes não sei se suportaria estas privações. Você já imaginou que o preço de um perfume que você usa dá para sustentar uma freira durante um mês?!”

Após quarenta minutos de explicações detalhadas sobre o que havia acontecido na noite anterior, finalmente convenci minha mãe a sentar na cama junto a mim, esticar suas pernas e a me cedê-Ias como travesseiro para que eu pudesse ler para ela a carta da Madre Gertrudes, que dizia:

 

Querida Dany,

recebi sua cartinha e vejo que está compreendendo cada vez mais o sentido do viver monástico e contemplativo. Vendo o seu despertar para essa vida nova no frescor da sua juventude não deve ser fácil tomar uma decisão tão radical em meio aos seus estudos de estilista que requer de você muita energia e vivacidade nas realidades do mundo, nas combinações das cores, nas tendências das estações. Gostei de ouvir dizer que continuo sendo uma monja “antenada” e “irada”. Embora essas palavras não façam parte do meu vocabulário. Acabei descobrindo em conversas com jovens que vinham ao mosteiro, que permaneço com o mesmo espírito jovial e atualizado de sempre. Para mim foi um elogio, pois, aos sessenta anos, continuo multiplicando a alegria da vida realizada que tinha antes de entrar para o mosteiro e que agora tenho em plenitude.

Achei “sinistra”, empregando a mesma palavra que você utilizou em sua carta, a sua concepção de uma vida contemplativa como sendo “trancada e fora da realidade”.

Não Dany, nossa vida está profundamente marcada pela presença do mundo contemporâneo. Ninguém entra para o mosteiro para fugir do mundo. Nós entramos para o mosteiro para viver o mundo na sua plenitude, e para resgatar o paraíso que perdemos pelos excessos que colocamos em nossa vida. Esses excessos são entulhos que nos distanciam de Deus, que nos fazem perder a certeza da sua presença em nosso meio, nos impedem de nos conhecermos verdadeiramente e de nos encontrar conosco mesmo e assim perdermos a chance de contemplar a beleza das coisas e o dom de nossa existência. Descobri, nos meus trinta e cinco anos de mosteiro que ninguém entra para uma casa religiosa para se martirizar, mas para realizar-se.

Você me perguntou se era preciso largar tudo para entrar para o mosteiro. Veja! Não se trata de perder tudo, mas de ganhar tudo! Naturalmente você terá que mudar não apenas de endereço, mas mudar de vida. Os valores que você encontra aí, em sua realidade serão plenificados de uma forma diferente. Não posso dizer, portanto que vai substituir uma música pop pelo gregoriano. O que posso afirmar é que vai amar tanto o gregoriano que ele será capaz de transformar o seu “gosto óbvio” pelo “gosto sublime”. Nada impedirá que Ana Carolina, da qual se diz fã, seja tocada no mp3 que você usará para revisar as aulas de línguas e espiritualidade ministradas em nosso mosteiro, porém o seu gosto juvenil será transformado por melodias tão ou mais belas do que aquelas que costuma ouvir no seu ipod.

Acredite, o que eu vejo e o que ouço estão muito além do que meus cinco sentidos me ensinam. E aí eu posso dizer realmente, estou “antenada” com todo o universo. Também afirmo a você que as aulas que tiver desenvolverá dons, sendo estes essenciais para bem servir aos irmãos. Como, por exemplo: história monástica, as reformas que tivemos ao longo da história, usos e costumes que diz respeito aos costumes próprios do nosso mosteiro, como entrar no coro, no refeitório; o nosso comportamento diante daqueles que vêm ao nosso encontro para pedir conselhos nestes tempos difíceis.

Pois é Dany, em minha vida monástica descobri que Deus se faz presente em tudo. Foi “ele” que nos escolheu muito antes de sermos criados, e, como uma mãe que embala sua filha, “ele” nos sustenta em seu amor e nos faz viver com alegria tudo o que fazemos aqui no mosteiro; mesmo nas coisas mais simples como: nos trabalhos que desempenhamos na cozinha, no ateliê de paramentos litúrgicos, na padaria onde fabricamos nossos pães, biscoitos (bricelets), pão de mel, trufas, geléias e outras coisas saborosas. Como também velas, o círio pascal, terços etc., pois nosso pai São Bento nos diz que devemos “viver do trabalho de nossas mãos”; e no contato com os que nos buscam para uma palavra amiga. Nossa vida de oração e trabalho, que chamamos de “ora et labora”, é desempenhada com alegria, porque uma monja triste é uma triste monja.

Consideravelmente não lhe será fácil viver as renúncias necessárias para se dedicar totalmente a Jesus, mas isso é vivido por todas as pessoas inclusive sua mãe e seu pai que, na medida em que você cresce, vai entendendo que se torna sempre mais independente. Mais uma vez lhe digo: abandonamos tudo para ganhar tudo, e descobrimos que acabamos acrescentando sempre um “mais” àquilo que já temos. Você terá uma nova família, mas o seu amor pela sua antiga família será não apenas mantido, mas ainda mais fortalecido. A menina de dezenove anos será transformada em uma mulher madura, realizada, na medida em que fizer desabrochar toda a beleza da sua vida nas mãos daquele que é o Senhor, Jesus Cristo.

Querida Dany, enquanto medita na sua decisão, que, sem dúvida é uma questão de escolha, pois Nosso Senhor no seu grande amor, não quis forçar nossa liberdade, embora tivesse o poder de fazê-Io, mas deixou-nos vir a “ele” unicamente pelo amor do nosso coração.

Deixo a você este pensamento de um dos nossos santos repleto de sabedoria: padre do deserto Dionísio Areopagita:

“Exercita-te, sem cessar, nas contemplações místicas, abandona as sensações, renuncia às operações intelectuais, rejeita tudo que pertence ao sensível e ao inteligível, despoja-te totalmente do não ser e do ser e eleva-te, assim, tanto quanto puderes, até unir-te na ignorância àquele que é além de toda essência e de todo saber. Pois é saindo de tudo e de ti mesmo, de maneira irresistível e perfeita, que te elevarás em puro êxtase até a irradiação tenebrosa da divina super-essência, depois de teres tudo abandonado e de te haveres despojado de tudo.”

Desde já, minha querida filha Dany, nós a deixamos bem dentro do coração de Jesus, e aí a acompanharemos, com carinho, pedindo-lhe que a guarde como a pupila de seus olhos na realização alegre e plena do seu plano de amor.

Sua mãe que a abençoa, com amizade e gratidão,

Madre Gertrudes, OSB.

 

Os parágrafos dessa carta ajudariam a definir o destino de uma vida que saía da alegria de um baile funk para a felicidade definitiva de um mosteiro. A partir de então, comecei a fazer um discernimento com o meu pároco padre Sérgio Ventura, acostumado a lidar com a juventude hodierna. Com o passar dos meses, fui percebendo o quanto tinha mudado. Meus amigos já não eram os habituais, a maneira de me expressar ganhou nova forma e comecei a ter um enorme desejo de doar-me em favor daqueles que mais necessitam. Passei a oferecer minhas horas de oração pela humanidade. Descobri então, no carisma beneditino, um ideal de entrega que unifica tudo aquilo que trazia no coração.

“Já vejo o que desejei. Já possuo o que esperei. Estou unida no céu àquele a quem na terra amei de todo o coração”.

Irmã Maria Gregória, OSB

Mosteiro da Virgem, Petrópolis

*Texto do Mosteiro da Virgem de Petrópolis

(Revista Grande Sinal – Ano LXIII – 2009/5, p.485-489)

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