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MILES STATARIUS

1. A Regra

 

Não foi São Bento o inventor do cenobitismo. Muito antes dele, no tempo de Santo Antão, já era costume reunirem-se os discípulos em torno de um mestre a fim de procurarem o caminho da perfeição na vida comum. Nos Atos dos Apóstolos encontramos um quadro de singelo cenobitismo: “Todos os que tinham fé viviam juntos e possuíam tudo em comum; vendiam seus bens partilhando (o produto) entre todos conforme a necessidade de cada um. Todos os dias, com o mesmo fervor, assíduos no templo, e partindo o pão em casa tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração, louvando a Deus e tendo o agrado de todo o povo. E o Senhor acrescentava à massa, cada dia, aqueles que estavam salvos” (Atos, II, 45-47).

 

Não foi também São Bento o primeiro a escrever uma Regra para os monges. Antes dele, São Pacômio e São Basílio já haviam legislado para comunidades religiosas.

 

Mas foi São Bento, certamente, que firmou o cenobitismo nas bases em que até hoje se mantém. O comentário da Regra Beneditina publicado sob os auspícios da abadia de Maredsous assinala três elementos que para o comentador são características da obra de São Bento. O primeiro é a precisão. Sua regra é clara e nítida. O postulante, desde os primeiros dias, conhece “sob que lei vai militar”, e sabe muito exatamente que compromissos toma a fazer a profissão. O segundo elemento é a discreção. São Bento, com efeito, não exige nenhuma austeridade extraordinária, prevê o alimento e sono suficientes, divide as horas entre a oração, o trabalho manual e a leitura, não sendo sua Regra concebida, nem para os heróis da penitência, como a de São Columbano, nem para uma elite intelectual, como a de Cassiadoro. Em suma, ele espera não prescrever nada de rude nem de penoso em demasia. O abade deve levar em conta a fragilidade terrestre, dispondo as coisas e distribuindo os trabalhos com moderação e discernimento, de modo que as almas se salvem, que os fortes desejem fazer mais do que se lhes pede, e que os fracos não desanimem.

 

Mas é o terceiro elemento assinalado por aquele comentador, a estabilidade, que marca de modo decisivo a obra de São Bento. Logo no primeiro capitulo da Regra, ele analisa as quatro espécies de monge e faz o elogio da forte raça dos cenobitas, isto é, dos que vivem em um mosteiro, militando sob uma regra e um abade. E nesta definição já estão contidos os elementos que constituirão os objetos de voto: estabilidade (no mosteiro): conversatio morum (regra); obediência (abade). Pode-se entretanto dizer que é no voto de estabilidade que está a chave do monaquismo ocidental.

2. Sto, stare, stans

 

No sentido literal, estabilidade quer dizer permanência no mosteiro. Significa fixidez, incorporação para sempre numa família. Mas o sentido espiritual dessa palavra deve ser bem apreendido para podermos avaliar, em toda a extensão, a obra do patriarcado do ocidente.

 

Hoje, quando se diz estabilidade, a primeira idéia que nos acode à mente é a de um modelo mecânico. Pensamos numa ponte, num edifício, numa pedra solidamente assentada sobre sua base. Se tomarmos um livro, por exemplo, direi que ele fica estável quando o coloco deitado, de modo que o centro de gravidade esteja amplamente inscrito no polígono de sua projeção horizontal. É estável quando não pode cair.

 

Ora, a raiz daquele vocábulo tem uma origem com sentido diverso e quase oposto. Essa palavra, que hoje tiramos da pedra para aplica-la figuradamente ao homem, foi na origem tirada do homem e aplicada às vezes, figuradamente, à pedra. Realmente, se pedirmos à ciência dos filólogos alguns dados de empréstimo, veremos que o termo latino stabilitas vem do sânscrito stâ, que significava estar em pé. Segundo F. Bopf (Grammaire comparées de langues indo-européennes, trad. frac.) o verbo sânscrito era da 1ª conjugação principal, sendo tistâmi a primeira pessoa do indicativo presente, de onde, provavelmente, deriva o latim testis, testemunha, lembrando o sujeito que se levanta para depor.

 

No “Tostius Latinitatis Lexicon” de Forcellini, colhemos no verbete sto o seguinte: stare ritto, o in piedi… opondo-se a sedeo e iaceo, e com os sentidos figurados de ficar firme, permanecer, durar, etc. Nota-se pois que o sentido próprio estava ligado à posição erecta do homem e que o sentido figurado incluía atitudes morais de firmeza e vigilância. Escolhendo uns poucos exemplos entre mil, temos no sentido próprio, em Plauto: “Hos quos videtis stare hic captivos duos, hi stant ambo, non sedent” (Cpt. Prol. v. 1) –  “Estes dois cativos que vedes aqui em pé, ambos estão de pé,  e não sentados”. Em Cícero: “Qui ausi aliquando sunt, stantes loqui…” (Bruto c. 77) – “Que às vezes ousaram falar de pé…”. No sentido figurado temos em Virgílio: Apud memores veteris stat gratia fact” – Mantêm-se gratos pelos benefícios recebidos. Em Cícero: “Stare in fide” – Permanecer fiel. E num sentido duplo, físico e moral, temos Suetonio: “Imperatorem ait statem mori oportere” – O imperador deve morrer em pé. E em Tito Lívio “miles statárius” é o soldado que combate em pé, ou que não arreda do posto.

 

Vê-se pois que stare está ligado estreitamente à posição do homem, derivando daí, quer no sentido moral aplicado ainda ao homem, quer na designação de coisas que imitam a posição vertical do homem. Estátua, por exemplo, deriva do mesmo radical, mas aplicava-se somente à figura do homem de pé. Estátua eqüestre não podia ser dito em latim, a não ser que se tratasse do Iniciatus que era ao mesmo tempo cavalo e senador.

 

A posição vertical do homem foi sempre sentida como um glorioso paradoxo, símbolo da excepcional situação desse misterioso ser dentro da criação, resultando disso a enorme fecundidade desse radical e sua imensa repercussão no campo das questões espirituais. Entre os gregos o fato de ficar de pé era tão importante que justificava a invocação de um deus especialmente propício às crianças que pela primeira vez se firmam nos pés. Encontramos em Santo Agostinho (Civ. Dei. lib. IV, 21) uma alusão aliás sarcástica, a esse pluralismo dos deuses pagãos: “Que necessidade há de recomendar à deusa Opis aos recém-nascidos, ao deus Vaticanus a criança que chora, à deusa Cunina a criança que adormece, à deusa Rumina a que mama, e ao deus Statilinus o que se firma nos pés?”

 

Estou com Santo Agostinho que eram deuses demais, os que rondavam a vida de um garotinho em Atenas, mas de todos aqueles o que mais se justificava era, sem dúvida, o que trazia no nome o antigo radical que simboliza a atitude maior do homem.

 

Aliás, consultando a Table des Racine do Dictionnaire Grec-Français de Bailly, encontramos o mesmo radical stô para ter-se em pé, com uma série de derivações semelhantes às latinas. Coluna, por exemplo, é stéle ou stylos, porque a coluna não somente é vertical como de certo modo lembra a nobre função humana de firmar e agüentar. Mais tarde voltará ao homem o símbolo dele saído, quando Paulo dirá que os apóstolos são as colunas da Igreja, provando assim que, para os antigos, a força das coisas mecânicas era, em última análise, uma força do homem.

 

Mas é nas Sagradas Escrituras que os derivados de stô ganham um especial relevo e um forte sentido espiritual. São Paulo aos Coríntios (I, XV) diz : “Stabiles stote, et immobiles”. Acrescentando também: “Itaque qui se existimat stare, videat ne cadat” – Aquele que se julga em pé, olha lá que não caia. E São Pedro, na primeira epístola (V, 8) aconselha a vigília nestes termos: “Sobrii estote et vigilate…” que a Igreja adotou para a oração da noite, num curioso paradoxo que convida o homem a stare justamente quando vai se deitar.

 

E com estes exemplos, depois de uma aventura penosa pela ciência que não é de nosso ofício, descobrimos que estável, no sentido clássico e escriturístico, dá ao mesmo tempo idéia de firmeza e de possibilidade de queda; ou melhor, sugere a firmeza própria do homem, sua condição, a verticalidade de seu corpo e de seu espírito, que é uma empresa com suas glórias e seus riscos. Dirá Santo Tomás a respeito do conceito de estado (no sentido de situação humana): “nomen status videtur ad quandam altitudinem pertinere” – a palavra estado sugere a idéia de elevação.

 

E no grego dos evangelhos encontramos o mesmo radical num objeto que marcou a atitude vertical do homem de um modo particularmente significativo. Refiro-me à cruz, que em grego é staurós.

3. Uma nova definição de monge

 

É mais que provável que, no tempo de São Bento, a palavra stabilitas tivesse ainda vivas todas essas ressonâncias que lembram a contradição do homem e da cruz. E, se estou certo, o voto de estabilidade, ao mesmo tempo que significava a permanência física no mosteiro, abrangia também o forte sentido da atitude escatológica pela qual a vida monástica era um estar de pé diante de Deus como se lê em Jeremias (XXXV, I-10): “Porque guardaste os mandamentos de Jonadab, vosso pai, a raça de Rechab não cessará de produzir homens que permanecerão sempre diante de pé de mim, disse o Senhor”.

 

E aí está uma bela definição para o monge, trazendo-nos à mente o nome daqueles soldados que combatiam de pé, e não arredavam de seus postos: o “miles statarius”.

 

4. Uma lição de Santo Tomás

 

Voltando ainda uma vez à Suma descobrimos que as lições de Bento e Tomás se harmonizam perfeitamente; e ainda uma vez verificamos que esses dois santos possuíram a virtude do bom senso em grau heróico. De fato, se Bento, na ordem prática, propõem como primeiro objeto de voto a estabilidade, Tomás, na ordem especulativa, começa o estudo do monaquismo pela consideração “De officiis et statibus hominum in generali”. (II-II, Qu. 183, art. 1-4); e começa por dizer que status evoca a idéia de estar de pé, citando Ezequiel: “Fili hominis, sta super pedes tuos”. E logo acrescenta que dessa noção deriva a de retidão e elevação. Mais adiante ensina: “Estado, no sentido próprio, é uma posição particular, não qualquer, mas conforme a natureza do homem”.

 

Deste modo a escolástica, mostrando que a vida do monge é um estado de perfeição, confirma este sentido do voto de estabilidade da Regra de São Bento, que se refere não somente às pedras do mosteiro, como também à vigilância e à prontidão.

 

Mas, a atitude de vigília não é própria do monge. Não é exclusiva dos mosteiros; sendo, antes a clássica atitude de todo o cristão. No caso do monge, porém, ela se constitui em estado, tendo sido solenemente prometida e solenemente aceita pela benção consagratória da Igreja. E é neste ponto que o monge se separa de nós para melhor guardar o tesouro da estabilidade e seus derivados. Adaptada e aplicada à cidade, a lição beneditina e tomista é esta: o homem não pode descuidar-se de seu prumo, não lhe convindo adormecer nos sarcófagos das fórmulas de equilíbrio mecânico que são o ópio do povo. O regime do direito e da justiça, a eqüitativa distribuição de riquezas, isto enfim que chamamos democracia de inspiração evangélica, é uma situação que deve procurar constantemente o antigo stô da verticalidade humana, e aferir todos os seus valores pelo prumo da cruz.

5. A sonolência

 

Pode-se dizer, de um modo geral, que a sorte da civilização – desta arriscada civilização que desceu um dia de Monte Cassino – depende da capacidade de vigilância dos homens. Temos uma certa tendência ao sono. Em todos os sentidos. As pálpebras de nossas pobres virtudes são pesadas. A terra, com seu zelo multiplicado de mãe devorante, atrai-nos. Convida-nos ao torpor. Oferece-nos o premio do nada. Prepara-nos um tálamo nupcial à sombra dos ciprestes. Convence-nos, com todas as forças da matéria, que a posição horizontal é mais estável que a vertical. Diz-nos que o fatigante stare dos santos e dos soldados não merece o esforço que custa. Que durmamos, e que deixemos a vida correr.

 

Nas suas mais modernas propostas, o materialismo político, confessado ou disfarçado, incita-nos a um completo abandono de nossas prerrogativas de verticalidade, estendendo-nos no chão um lençol que será um sudário, sob as ramas venenosas de um Estado que chama a si, absorvendo-o em si, o status do homem.

 

Despojam-se todos os seus prumos, e no piramidal e estável monumento das demissões humanas, o Estado Total concentra em si as forças que os antigos punham nas suas colunas, nos mastros dos navios, e na cruz de Nosso Senhor.

 

Os fenômenos lingüísticos acompanham muito de perto os fenômenos sociais, e não é de estranhar que o mais desumano dos monstros modernos tenha guardado o nome, a palavra, a raiz, pela qual os homens até hoje se distinguiram das bestas e das serpentes. E isto aconteceu porque os homens se cansaram da fatigante vigilância. A liberdade obriga à vigilância. A salvação obriga ao revezamento do plantão, porque o leão ruge em torno de nós.

 

Num magistral estudo sobre a crise da civilização, Belloc assim se refere ao profundo desespero da sociedade pagã greco-romana: “Quanto mais avança esta civilização pagã em seu desenvolvimento – um rápido desenvolvimento que a transformará e a envelhecerá num lapso de três séculos – mais profundamente penetra nela esse desespero. Sentimos isto na progressiva letargia que entorpece os homens, na esterilização de seu poder inventivo e sobretudo  no refrão contínuo de sua literatura (…) Entre mil trechos magníficos que poderíamos escolher para ilustrar a profundidade desse abandono, recordemos estes versos escritos pelo mais patético dos poetas latinos:

 

Soles occidere et redire possunt

Nobis cum semel occidit brevis lux

Nox est perpetua una dormiunda

 

“Devemos notar particularmente este ‘dormiunda’ – diz ainda Belloc – com suas lúgubres vocais. O grito é de Catulo. A sociedade greco-romana agonizava. Mas isto é a metade, e a menos importante metade da verdade, pois é preciso acrescentar que ela morria de desesperança. E foi então que apareceu no mundo uma força que teve a virtude de transforma-la”.

 

Esta esplendida passagem de Belloc tem entretanto um defeito, a meu ver: o de sugerir, pelo menos assim isolada do contexto, a falsa idéia de que o cristianismo venceu definitivamente a sonolência do espírito humano, ou melhor, a funesta idéia de que a ação civilizadora do cristianismo tem uma eficácia própria, necessária, mecânica, que dispensa nossa vigilância. O homem continua sob o peso do pecado original, e continua a encher os séculos com seus bocejos, e às vezes com os estertores de seus pesadelos.

 

Não é em Catulo, nem em outro poeta pagão, mas num moderno que encontramos esta pequena quadra citada por Unamuno:

 

Cada vez que considero

Que me tengo de morir

Tiendo la capa al suelo

Y no me harto de dormir.

6. Dois cochilos terríveis

 

Aliás, falando em sonolência, convém lembrar que os apóstolos dormiram em duas ocasiões inauditas. Na transfiguração, segundo Lucas, e na paixão, segundo o depoimento de três evangelistas. No momento em que Cristo quer mostrar aos discípulos um fulgor de sua glória, “Pedro e seus companheiros estavam acabrunhados de sono”. Mais tarde, em Getsemâni, diz o Senhor aos seus discípulos: “Ficai aqui enquanto vou adiante orar”. E começando a sentir tristeza e angústia diz aos seus discípulos: “Minha alma está triste, mortalmente triste: ficai aqui; vigiai comigo”. E tendo avançado um pouco, prostou-se com a face em terra, rezando e dizendo: “Meu pai, se é possível, afasta de mim este cálice. Mas não como eu quero; e sim como Tu queres”. Voltando aos discípulos encontrou-os a dormir e disse a Pedro: “Então, não pudeste velar uma hora comigo?” Vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito, em verdade, é ágil, mas a carne é fraca”. E retirando-se pela segunda vez tornou a rezar: “Meu pai, se não pode este cálice desviar-se sem que eu o beba, faça-se a Tua vontade”. E voltando a eles, achou-os ainda a dormir porque seus olhos estavam pesados de sono. (Mat. XXVI, 43).

 

É terrível imaginar-se esse momento em que o Filho de Deus clama ao Pai e suplica aos homens: “Fiquem aqui, velem comigo, pois minha alma está mortalmente triste”. Mas, de certo modo, este mistério doloroso lança uma luz sobre o mistério da incarnação, ajudando-nos a compreender que Deus se fez homem para melhor suplicar aos homens, como um homem. “Então, não pudestes velar uma hora comigo?”.

 

7. Sentinelas do Cristo

 

Ora, o monge, no seu estado, na sua estabilidade, é aquele que ouve o conselho de Deus Homem na súplica do Homem Deus. Sentinela do Cristo, propõe-se suprir e resgatar a sonolência dos outros, velando e orando. No voto de estabilidade física no mosteiro está portanto incluída a idéia central de estabilidade no coro, em pé, atento, expectante, pronto para correr ao encontro do esposo que tarda, e que virá em meio da noite.

 

O Ofício Divino é portanto o centro da vida do monge, pois é aí, nesse momento e nessa atitude, que ele melhor realiza seu estado. O sentido da vigília transcende agora, no coro, o ascético cuidado de não cair em tentação, e desabrocha, para além da paixão, no louvor que à glória de Deus é devido. Entre o horto e as núpcias, entre os terríveis jejuns de Clairvaux e o laus-perenne de Cluny, o monge paga uma dívida e canta. Ele é o “amigo do esposo, que fica em pé” na estabilidade da vigília e do louvor.

8. A civilização

 

Disse atrás, a propósito do radical stô, que o homem viu sempre na sua vertical um símbolo de dignidade. Os diferentes fenômenos lingüísticos – que apenas esbocei por me faltar o hábito do ofício – mostram singular concordância com os sentimentos de exaltação e angustia que, em todos os tempos, preocuparam o homem a respeito de sua condição. Disse também, se não me engano, que a vida moral é vigilância contínua, não havendo nunca, enquanto há vida, um termo perfeito, uma conclusão, um arremate, um repouso. Cada problema resolvido é um novo problema aberto; cada situação atingida é uma nova situação iniciada; cada fim é um principio. Freqüentemente, fatigados, mortalmente fatigados desse rosário ininterrupto de problemas, atitudes e situações que só acabam para começar, e recomeçar, e continuar, como as águas de um rio – freqüentemente tentamos trazer para a vida, isto é, para esse plano dos atos morais, o critério e os métodos próprios dos atos artísticos ou técnicos. Metemos as mãos nessa massa espalhada e fluida numa insensata tentativa de esculpir momentos de vida, que se imobilizem num termo, como se quiséssemos erguer uma encruzilhada dos tempos a nossa própria estátua. Ou tentamos trazer para os minutos da alma os ritmos da poesia e da música.

 

E esse esforço, que parece provir de uma transbordante vivência, porém, na verdade, de uma sonolência.

 

A vida conjugal, por exemplo, começou numa festa que marcava o termo de uma vida e o começo de outra. A festa é um patamar da vida. É uma estação. Mas a vida continua e a festa fica para trás, num álbum, num véu guardado, numa flor murcha. E a vida continua, com seu desafio quotidiano, fastidioso, minucioso, num desgaste terrível das reservas de amor que o noivado acumulou. Ou, pelo menos, das reservas desse amor que parece tecido de poesia e de música. E a fatigada impaciência procura substituir a ininterrupta vida conjugal por uma série de romances, inda que esses volumes formem as obras completas da infidelidade. E, se ainda maior é a impaciência, não possuindo sequer capacidade para a literatura de fôlego, será a vida conjugal substituída por uma série de anedotas.

 

O que é difícil, na vida, é não substitui-la por coisa nenhuma. O que é difícil, na vida, é manter-se o homem de pé, consciente sempre de seu estado, atento sempre aos ventos do mundo que tentam verga-lo, esse pobre junco.

 

Na política, que também exige do homem a mesma verticalidade vigilante, e fatigante, quando o sono pesa nas pálpebras, procura-se uma solução técnica e cômoda, uma nova estrutura que funcione, desde que se lhe dê corda, como um maquinismo fabricante de bem-estar. Projeta-se na prancheta de desenha a épura de uma sociedade humana ou pensa-se transformar a confusa massa de atores indisciplinados numa apoteose wagneriana. Ou então, passa-se quinze anos a fazer da vida política uma série de anedotas.

 

Muita gente tem a ingenuidade de crer que a civilização é uma inabalável conquista garantida pelas invenções da mecânica. Temos, por exemplo, o automóvel, logo estamos definitivamente senhores das distâncias. Temos a geladeira elétrica, logo estamos definitivamente senhores do calor. Temos o radar, logo não haverá mais trevas para nossos olhos. E assim por diante.

 

Ora, Civilização é uma coisa muito menos garantida do que parece. O que possuímos, podemos perder. O que sabemos, podemos esquecer. E, se estamos de pé, podemos cair. Nossos sucessos são precários e constantemente disputados pelo Príncipe que tenta impor ao mundo um direito de conquista. Revendo os últimos acontecimentos salta aos olhos a fragilidade da civilização. Bastou um cochilo, para transformar o mundo num monte de escombros; bastou, entre nós, um colapso de vigilância política, para que a vida pública de nossa terra se transformasse num prolongado Joujoux et Balangandans, em que nos furtaram o que nós e nossos pais havíamos conquistado: o pão, a carne, o açúcar, e o direito de voltar para casa dignamente. Bastou para isso que altiva a raça dos batizados se curvasse muito baixo diante daquilo que o homem de Deus aprendeu, com a igreja de Cristo e dos santos, a sempre considerar com desconfiança: o Estado. Porque essa entidade, como seu nome indica, facilmente se torna monstruosa, e dificilmente resiste à tentação de absorver em si toda a capacidade humana de stare, isto é, de ser vertical e digna.

 

Civilização, na verdade, é estar em pé. Em cada momento histórico o futuro do gênero humano depende da atenção vigilante e consciente de cada homem. E por aí se vê que o monge é um elemento civilizador sendo um campeão de vigília. Transferindo analogicamente a estabilidade beneditina para o domínio da vida política, teremos a força indispensável a esse regime que chamamos democracia cristã, e que se caracteriza por uma viva consciência da realidade moral e do primado da justiça.

 

O mundo moderno padece de um singular escurecimento. Já o disse, diversas vezes, e torno a dizê-lo. O homem não se lembra mui exatamente o que é. Não se lembra sempre, como o recomenda a Santa Regra beneditina, o nome que tem. E é por isso, principalmente por isso, que nossa civilização corre um grave perigo. Estamos ainda dormindo tendo apenas passado, no fragor das batalhas, da modorra tranqüila para um sobressaltado pesadelo.

 

A ciência que o homem tem de si mesmo está em crise. A pergunta da esfinge é respondida com uma coleção de disparates. O homem não sabe mais o que é.

 

Ora, entre outras coisas surpreendentes, e diria até chocantes, que nossa fé nos ensina, temos esta: se quisermos saber mais exatamente o que é um homem, devemos erguer os olhos para uma mulher.

9. Stabat Mater dolorosa…

 

Em verdade, a Virgem Santíssima, em cujos pés deponho este pequeno trabalho, que andei compondo e escrevendo durante o mês de maio, o seu mês, é a coroa da criação. Primeira remida, e mais perfeitamente remida, ela abriu com seu assentimento os caminhos do preceito e do conselho. Foi ela, a bem dizer, a primeira virgem consagrada e o primeiro monge. E é nela que encontramos realizada de modo perfeito a estabilidade monástica.

 

Para nos convencermos disto, basta abrir o missal na Festa das Sete Dores de Nossa Senhora. Logo no Intróito, a primeira palavra que nos salta diante dos olhos é esta: “Stabant…”. Estavam em pé junto da cruz, sua mãe, a irmã de sua mãe, etc. Vejam bem o diálogo tremendo destas duas atitudes: o filho da cruz, de pé, pregado no madeiro que tem aquele mesmo radical misterioso, a raiz do homem, da sua vertical; e a mãe, e mais as outras três mulheres, de pé, formando por assim dizer o primeiro coro, diante da cruz.

 

Na coleta, a palavra reaparece para designar os santos que se mantém de pé, ao lado da cruz:…“e pelas preces de todos os santos que estavam fielmente em pé junto da cruz”. Fideliter astantium. No Gradual, com uma nota de dor, pela terceira vez encontramos: “Dolorosa et lacrimabilis es, Virgo Maria, stans juzta crucem Domini Jesu, Filii tui Redemptoris”. No Tractus: “Stabat Mater dolorosa...”. No Evangelho, novamente, a primeira palavra que lemos é: “Stabant...”. E no Ofertório: “Recordare, Virgo Mater Dei, dum stéteris in conspectu Domini...”.

 

Vê-se assim que as Sete Dores de Nossa Senhora aparecem no Missal sete vezes ligadas aos derivados do vocábulo que se encontra nos mais remotos documentos do mundo, sempre que está em jogo um problema fundamental do homem.

 

Há, porém, nas Dores de Nossa Senhora, uma atitude especial que merece muita atenção. Passa-nos despercebida primeiro; espanta-nos depois. E é esta: a mais dócil e obediente das criaturas humanas não deu um só passo e não pronunciou uma só palavra no sentido de interceder por seu filho junto ao poder de Roma. Quem intercedeu foi a mulher de Pilatos, por causa de um sonho. Não a Mãe de Deus. Dócil e obediente à vontade do Pai, a mulher forte, a criatura erecta por excelência, o cedro do Líbano, não quis nunca submeter o sacrifício de seu Filho aos decretos do Estado. Em cada statio da via-crucis a Virgem Santíssima afirmou a isenção da Igreja e a primazia espiritual. Sua atitude vale um tratado.

 

10. As filhas de Santa Escolástica

 

Gostaria de abrir um largo capítulo para falar nas virgens consagradas ao serviço do Senhor. Muita coisa do que já disse se aplica tanto aos monges como às virgens, na medida em que ambos imitam a atitude de obediência da Virgem Santíssima. Mas a entrada da virgem no estado religioso parece-nos conter um elemento a mais do que na profissão monástica dos homens. A magnífica dramaturgia com que a Igreja cerca a consagração virginal, mais do que no caso dos monges, se assemelha a uma festa de núpcias. Dir-se-ia – não sei – que a união mais forte, mais íntima, mais livre de qualquer função, mais próxima do céu. O pontífice fala à monja com a voz do esposo: “Veni, electa mea, et ponam in te thronum meum...”. E depois da imposição do véu insiste, no tom premente dos noivos: “Desponsari dilecta veni...”. “Vem, ó bem amada, vem para a festa de núpcias; já passou o inverno, a rola canta, recendem as vinhas em flor”.

 

Se o monge é “o amigo que fica em pé, ao lado do esposo”, a monja se apresenta como a própria esposa: “Estou desposada com Aquele a quem os anjos servem, e cuja beleza o sol e a lua admiram”.

 

Digo por isso que as virgens consagradas desfrutam já, aqui e agora, uma união mais perfeita do que os monges. Mas digo-o sem provas. Não tenho certeza; e que Santa Escolástica me perdoe se deixo tão mal esboçado o problema de suas filhas para voltar a São Bento, terminando esta modesta homenagem que, a par a canseira e das decepções experimentadas pelos esbarros em meus próprios limites, trouxe-me já a recompensa de um acréscimo de veneração.

11. Conclusão

 

Tentei mostrar nas páginas anteriores o sentido, a extensão, e o campo das aplicações analógicas da estabilidade, que constitui o principal característico da Regra de São Bento. Focalizado nos seus diferentes planos, explorando sob ângulos diversos, o conceito revela uma riqueza enorme que se estende da fidelidade aos compromissos humanos à fidelidade dos votos pronunciados diante de Deus; que diz respeito à abadia, à casa de família e à cidade; que vai do homem à pedra e da pedra ao homem; que se refere à posição erecta de Nossa Senhora e à posição vertical da cruz.

 

A figura do monge, nesta tentativa de um esboço, surge-nos como um marco. Vemo-la como o profeta viu: aquele que fica em pé diante do Senhor. Apreciamos a profundidade e o alcance do humanismo beneditino, tão semelhante ao humanismo tomista, compreendendo que a atitude que verdadeiramente convém ao homem é aquela que o eleva. E aprendemos, com São Paulo, que assim sendo não pode haver descuido, pois esta atitude por si mesma implica a idéia de queda.

 

E a rigor, podemos dizer que a lição dos monges, não foi perdida. Apesar de tudo, a estabilidade beneditina ajudou o mundo a se firmar, justamente nos momentos em que parecia perdido. Compete-nos agora continuar. Exploremos e usemos o patrimônio de São Bento, para bem servir à sociedade e à Igreja, nestes tempos perturbados em que os falsos salvadores nos querem arrebatar o status para formar um monumental monólito, uma nova pirâmide egípcia que será, não o túmulo de um rei, mas o sarcófago de um povo. Firmemos pois nossos pés; sejamos mastros de vigilância; colunas de dignidade; torres de justiça. Contra o materialismo que nos quer prostrar, e contra o falso espiritualismo que tem a pretensão insolente de interceder por nossa Igreja, saibamos ser monges, firmes, inabaláveis, como os soldados romanos que combatiam de pé, sem arredar do posto.

12. “O imperador deve morrer em pé”. (Suetonio)

 

Mas vejo agora – um pouco tarde talvez – que posso ser acusado de ter andado a fazer jogo de palavras. Dirão que tirei de um verbete de dicionário, e de uma mera coincidência de palavras, abundantes conseqüências, emprestando aos vocábulos mais do que realmente contêm. Bem sei que isto é perigoso, e que, mesmo em relação às Sagradas Escrituras, não convém fugir demais do sentido literal para procurar sentidos ocultos e simbólicos.

 

No caso presente, porém, a abundancia de provas parece demonstrar que a idéia de aproximar o voto da estabilidade do estar em pé, em coro e diante da cruz, é verdadeira; e que é impossível supor que no espírito de São Bento não escoassem todas essas ressonâncias quando ele fez da estabilidade o objeto de um voto.

 

Mas eu deixei para o fim dois argumentos que me parecem especialmente convenientes. Alias, a verdade é que só agora me vieram elas à mente, quando no capítulo anterior – como se vê pelo tom de peroração que lá ficou – tencionava encerrar este estudo. E não oculto que tive uma grande alegria quando os encontrei.

 

O primeiro argumento é este: São Bento, ao sentir aproximar-se a hora de sua morte, fez questão de ser levado para o Oratório, fez questão de ser sustido pelos braços de seus filhos, e morreu em pé. Eis como São Gregório Magno, em seus Diálogos, narra os últimos dias do patriarca: “Seis dias antes de sua morte mandou abrir a sepultura. Logo a seguir foi atacado de febres e começou a sofrer de seus ardores violentos. Como a enfermidade se agravasse dia a dia, fez-se levar no sexto dia por seus discípulos ao Oratório, onde se prevenia para sua partida deste mundo com o Corpo e o Sangue do Senhor; depois, amparando seus débeis membros nos braços de seus discípulos, ficou em pé, com as mãos levantadas para o céu, e exalou seu último suspiro murmurando uma oração”.

 

Agora vejamos o segundo argumento. Este vem dos evangelhos e tem um certo sabor, que nos faz pensar numa coisa que está constantemente e cuidadosamente velada nas escrituras: o sorriso de Nosso Senhor. Voltemos ao texto de São Mateus que nos serviu para definir a obediência do monge e que se refere mais diretamente à obediência dos apóstolos. Depois da partida do moço rico, e das palavras de Deus sobre o camelo e a agulha, eis que Pedro (a quem competia sempre fazer tais perguntas) interroga o Senhor: E nós? E Jesus lhes diz: “Em verdade vos digo, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glorias, vós também, vós que me haveis seguido, vos sentareis em doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel”.

 

E aqui está a chave final de nosso problema. O prêmio oferecido àqueles peregrinos, àqueles vigilantes, que ficaram de pé no coro, ao lado do esposo, ao pé da cruz, nos caminhos da vida e na hora da morte, o prêmio do cêntuplo e da vida eterna está ligado a essa atitude final, de repouso, de termo atingido e de bem conquistado: os apóstolos e os monges, no fim dos tempos, estarão sentados em torno do Rei.

(A Ordem — Julho, Agosto e Setembro de 1947)

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