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SÃO BENTO

1. Fulgens radiatur

 

Ora, em meio dessa angústia, obscura, fulge radiosa a obra conciliadora de São Bento. Antes de Santo Tomás, o mais tomista e sensato dos santos vem mostrar praticamente a firme conexão entre o extraordinário e ordinário, entre a aventura e a estabilidade, entre os horizontes do deserto e as paredes do mosteiro. E essa paradoxal proporção do que parecia desproporcionado, essa audaciosa analogia ele a realiza em sua própria vida. Entre a caverna de Subiaco e o mosteiro de Monte Cassino, São Bento traça com mão robusta a linha da tradição. Entre os espinheiros do monte e a Santa Regra, São Bento liga numa só linha o caminho da perfeição. A violência torna-se discreta; os instrumentos adaptam-se ao homem; o mosteiro, sem nenhuma diminuição de sua austeridade, reconcilia-se com a cidade cristã.

 

Foi por ouvir os homens que Bento desceu de sua solidão, e Deus quis provar a caridade do eremita consentindo na dura decepção de sua primeira experiência entre os homens. No dia em que os maus filhos de Vicovaro planejaram o parricídio, e concertaram os detalhes, e deitaram veneno no vinho que ofereceriam ao pai, houve certamente, como na história de Job, um tremendo diálogo entre Deus e o Príncipe das trevas. Uma aposta entre os céus e os infernos. E Deus aceitou o desafio.

 

E agora ali está o Judas tonsurado, que se curva pedindo a benção, e que oferece ao abade a bilha de vinho envenenado. A história é conhecida: o sinal da cruz vence as forças do inferno e, diante dos lívidos assassinos, a bilha se quebra.

 

Mas o desejo de Satã não visava simplesmente a morte de Bento. Que lucraria ele com a morte de um santo? Que parte poderia ter o condenado nas alegrias do céu? Outro era seu plano. Outro era o objetivo de seu desafio. A dúzia de almas que já colhia naquele motim de monges era um detalhe, um nada, um palito para a sua insensata fome de almas. O que ele queria, creio eu, era que Bento descresse definitivamente dos homens. Não de Deus. Isto, eu penso que ele não ousava esperar. Mas que desanimasse do homem, por causa dos homens; que desprezasse a condição humana, a essência do homem, a humanidade do homem que o Cristo aceitara e com seu sangue resgatara. Este era o plano do Demônio.

 

Em outras palavras, ele queria destruir no germe a obra que já farejava. Queria destruir Monte Cassino. Planejou adiantado; mas chegou atrasado. Gastou mil e quatrocentos anos. Teve de mobilizar todos os seus grandes recursos: animando Lutero, inspirando Hitler, inventando a cruz quebrada (em desforra da bilha quebrada pela cruz), propagando no mundo uma filosofia que descrê do homem, em nome do super-homem, endurecendo com o ruído das metralhas os ouvidos dos soldados, que vinham de outras terras, arrancar a swastica das terras da Itália, arregimentando as traições, as insatisfações, os recalques e todas as muitas espécies da imbecilidade e da felonia.

 

Conseguiu derrubar as paredes do mosteiro. Monte Cassino já não existe. Monte Cassino foi reduzido a escombros. Mas duas coisas sobraram: a cripta onde os despojos do santo esperam a ressurreição; e a obra imorredoura que, mais do que nunca, fulge radiosa.

2. A obra civilizadora

 

Chamado novamente por outros discípulos, depois da sombria experiência de Vicovaro, São Bento torna a obedecer à voz de Deus pronunciada pela penúria dos homens. E com o claro gênio, somente igualado por seu filho adotivo Tomás, que ele cede a Domingos e retoma na hora da morte, Bento traça as bases singelas e robustas do monaquismo estável sem imaginar talvez que, na superabundância de sua abadia, estava incluído o que hoje chamamos civilização ocidental. O que ele fundava era uma casa de família, ou uma escola do serviço de Deus. O que ele fundamentava era um estado de perfeição em que a ousadia e a discrição se adaptavam aos arroubos do espírito e às fraquezas do corpo. Mas indiretamente, sem o querer, pela difusiva força do que é bom, São Bento amarrava fortemente as duas pontas quase partidas da tradição, ligando a vida prodigiosa dos santos do deserto às capacidades de nossa vida quotidiana. E, em conseqüência disto, sua obra foi fortemente civilizadora.

 

Pela simples presença, mais do que por uma série de operações calculadas, o mosteiro fertilizava e civilizava. Como o cristal de arestas rígidas e faces límpidas faz com que tudo, dentro da água salgada, se ordene e cristalize, assim também, pelo exemplo da forma, pela dureza das arestas perdidas, o cristal de Monte Cassino precipitou as salinas do mundo ocidental. Por acidente, evangeliza enormes regiões. Batiza os anglos. Converte os germânicos. Enche o mundo de heróis. Povoa a Igreja de santos. Pela simples presença, sendo o que é, uma abadia, casa de orações, statio de perfeição, família, escola de serviço de Deus, sem planos de conquista e sem planos de expansão, sendo o que é, Monte Cassino acende um farol que orienta as hordas bárbaras, mostrando àqueles violentos o caminho da menos defendida das fortalezas: a casa de Deus. E os bárbaros se tornam monges, mansos como cordeiros. E os romanos de fina estirpe ombreiam na salmodia com os hirsutos e rudes germanos, cujo olho azul viera buscar, através de léguas e léguas de caminho, por florestas e montes, por travessias de torrentes furiosas, por neves e calmarias, a luz de uma vela sobre o altar.

3. Ser, estar, ter e fazer

 

Se alguém tivesse dito a Bento, no dia em que ele tomou o caminho de Monte Cassino, para fugir com seus filhos à inveja de Florêncio, que sua obra se destinava a salvar a cultura clássica e a fundamentar uma nova civilização, o santo ficaria muito espantado. E assustado.

 

O que ele tinha em mente era uma obra simples que se destinava primordialmente a ser o que era. Das operações e das aplicações extrínsecas desse patrimônio, que assim formava, o patriarca certamente não cuidava. E foi justamente por isso, pela solidez de sua própria natureza, e pela ausência de qualquer programa prévio de apostolado e civilização, que as abadias beneditinas tiveram sempre disponíveis enormes forças de fecundação para cada época. Quando um grande papa, filho de Monte Cassino, planeja e organiza nos mínimos detalhes a expedição evangélica à terra dos anglos, lá estavam os monges para servi-lo, menos por alguma aptidão especial às viagens do que pelo simples fato de lá estarem.

 

E não terá sido por mera coincidência que Tomás saiu de Monte Cassino, para buscar no itinerário traçado por Domingos, uma prodigiosa aplicação do patrimônio beneditino. O ser que o monge é, Santo Tomás o aplicará, suberabundantemente, mugindo através dos séculos; e quando tiver espalhado todas as sementes recebidas, voltará ao ponto de partida, ao monte santo, e morrerá como uma criança de quatro anos no regaço duma abadia.

 

E não será também por mera coincidência que Francisco, o mais atraente e convincente doido de Nosso Senhor, foi procurar nos espinheiros do Subiaco o antigo segredo para vencer a rebeldia da carne.

 

E hoje, graças a obra de São Bento, que continua, e que se articula na multiplicidade de outras obras, tendo atravessado a obscuridade medieval, e a claridade medieval, sob o agudo olhar de Santo Tomás, e sob o ardente olhar de São Francisco, continuando sempre, transbordando sempre, com fortes oscilações de nave que atravessa mar grosso, jogando nas ondas, entre Cluny e Clairvaux – hoje, graças a essa obra continuada e mantida, nós podemos ler sem sustos as vidas dos padres do deserto, porque está aberto e desbastado o imenso campo das analogias, que veio enriquecer a obediência ao conselho evangélico.

 

São Bento, com seu incomparável exemplo prático, libertou-nos do univocismo, aproximando o que parecia distante e irreconciliável. O extraordinário é inserido no ordinário. Ao quotidiano monástico, substancia da nova conversatio beneditina, corresponde o nosso quotidiano na vida familiar e profissional. A “petite voie” do grande monge refloresce na santidade moderna de Santa Teresinha; e a pedra transforma-se em rosas.

 

E nestes tempos angustiados, em que todos procuram o segredo do homem no ter e no fazer, volta São Bento a ensinar nos seus montes santos multiplicados pelo mundo, que o segredo fundamental do homem está no ser e no estar. O grande problema do trabalho, em torno do qual se enrola hoje um torvelinho de falsas doutrinas, como assinalou o Santo Padre em sua encíclica, em nenhuma obra humana está mais dignificado do que na legislação beneditina. E creio não me enganar dizendo também que a Ação Católica só poderá produzir bons frutos na medida em que a participação no apostolado da hierarquia imitar a grande linha tradicional dos monges. Penso, em suma, que o mundo cristão de nossos dias, se não compreender o que é o monaquismo, ou não apreender o sentido do ser e do estar, perder-se-á num ativismo insensato. Já pairam sombrias dúvidas acerca do que o homem é, tornando-se dia a dia o que tem e o que faz, como se essa infeliz criatura se tivesse tornado tão excêntrica que andasse a correr no encalço do próprio coração.

4. O exemplo do abade

 

Sobre as possíveis aplicações do patrimônio no mundo moderno poderíamos escrever muitos volumes. É impossível, creio eu, pensar numa re-cristianisação dos povos sem esse elemento, que nas situações mais criticas da história firmou a Igreja. Não digo isso somente por causa do benéfico exemplo de vida austera e pobre, que os monges trazem à cidade. Nem tampouco me refiro à invisível ação da chuva de orações que caem sobre os nossos telhados. Entre a ação puramente moralizadora, e aquela devida à reversibilidade dos méritos na comunhão dos santos, há uma ação mais específica que consiste na reestruturação da sociedade.

 

Abrindo a Regra de São Bento, no segundo capítulo, onde trata do Abade, encontramos duas vezes uma misteriosa expressão que ilustra bem a nossa idéia. “O abade – diz a Regra – deve se lembrar sempre do nome que lhe dão”.

 

Esse preceito estruturador, trazido para fora da clausura, aplica-se a cada um de nós, ao presidente da república e a mim, como uma advertência de responsabilidade, e como um fundamental artigo de fidelidade à condição humana.

5. O oblato

 

Neste ponto quero apresentar um personagem obscuro, e de esquisito nome, que poderá ter grandes préstimos de apostolado, enquanto souber imitar o mosteiro e o abade, lembrando-se sempre do nome que dão. Refiro-me ao oblato.

 

Não é propriamente um monge. Não veste o hábito nem pronunciou os votos solenes. Ou melhor, usa no peito um pedaço do hábito; e guarda na memória o que prometeu, diante do abade: realizar na cidade e na família uma conversatio análoga à dos monges; sendo assim um pedaço do mosteiro, espécie de diástase espiritual, que leva pelas ruas da cidade, não somente o exemplo moral, mas a semente do ser monástico. É um pequeno mensageiro. Um modesto colonizador. Sua ligação concreta e freqüente com a abadia facilita a circulação da seiva que pode vivificar a cidade. Ele desce e sobe a ladeira do monte santo, num ritmo mais rápido do que os monges, indo e vindo, trazendo e levando, como um pobre cão de pastor no meio de um rebanho anarquizado. Ladra às vezes com raiva; uiva às vezes com melancolia; mas procura, o pobre coitado, ser fiel ao nome que lhe dão. E, como aquele cachorro pintado nos anúncios das vitrolas, conhece a voz de seu Senhor.

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