São Bento - Homem de Deus para todos os tempos
Conferência de Dom André Louf,
Abade trapista de Mont des Cats, em Notre-Dame de Paris,
em 16 de dezembro de 1979.
Da revista Ecoute, n° 259, 15 de fevereiro de 1980.
Tradução do Mosteiro da Virgem – Petrópolis.
Introdução
O título desta conferência teria surpreendido muito a São Bento. Quando, jovem provinciano, recém-chegado a Roma e destinado a uma carreira de estudos, bruscamente volta as costas à cidade rumando para o deserto, Bento não tem mais nenhuma ambição, nem para o presente, nem para o futuro. Abandona a casa e os bens de seu pai, interrompe estudo de letras que mal havia começado. Por quê? Para renovar um gesto feito tantas vezes antes dele, e que outros também farão, mais tarde, seguindo-o: toma distância em relação ao mundo e mergulha na solidão. Seu biógrafo assim o descreve: “Ele se retira, sábio sem letras, ignorante conduzido pela Sabedoria, querendo agradar só a Deus”. Quanto a seu futuro, Bento o ignora totalmente. Os discípulos que irá atrair em breve, a Regra que um dia porá por escrito, a influência durável que irá exercer na Igreja, mesmo quinze séculos depois de sua morte, tudo isso não lhe vem sequer ao espírito. Por ora, Deus lhe basta.
Mesmo seu biógrafo, Gregório Magno, Papa de Roma, pouco pressente o brilho que seu próprio escrito conferirá ao obscuro abade de quem empreende narrar alguns fioretti. Gregório é bispo e, como bispo, além de comentar assiduamente a Palavra de Deus, entende dever mostrar a seu povo aquelas Palavras de Deus ilustradas e vivas que são os Santos. Deus fala a seu povo por meio desse crente no qual sua Palavra deu fruto ao cêntuplo, Bento de Núrcia, que Gregório saúda com o vocábulo de vir Dei – Homem de Deus. Esse nome lhe cabe porque é ele um reflexo da Palavra de Deus e porque a imagem que projetam reciprocamente, a Palavra e o Homem, é a própria imagem de Deus, revelada em seu Filho Jesus. Bento ainda está longe, certamente, de ser o Patriarca dos monges do Ocidente, no momento em que Gregório se põe a redigir sua vida. Gregório, porém, já nele reconheceu um vestígio de Deus nessa presença do Espírito Santo que chamamos de santidade. Bispo, está ele em condições de discerni-la, deve avaliá-la, atestá-la. Atrai a atenção de seus cristãos para este homem em que se manifesta o Espírito do único Justo, como diz, o Espírito de Jesus Cristo, de cuja plenitude os santos tudo receberam (Diálogos, 8).
Este momento é importante na vida de uma Igreja. Na face de um santo, a Igreja se reconhece a si mesma, ou antes, reconhece Jesus Cristo continuando a caminhar no meio dela. Desse mútuo reconhecimento entre o Povo de Deus e seus santos, a Igreja cada dia se nutre e se edifica. Assim, ela discerne cada vez melhor o caminho para si hoje, e onde Deus a espera. Como um farol aceso na noite, o santo baliza o caminho. Ou melhor, já que sua luz não é senão o reflexo da luz de Deus, no santo, é o próprio Deus que faz sinal para sua Igreja. Bem aventurada Igreja que, a cada instante de sua história, sabe discernir a santidade que Deus lhe dispensa com tamanha largueza.
É certo que cada época recebe santos que lhe são próprios, que têm uma palavra bem precisa para entregar a sua Igreja. As formas exteriores da santidade evoluem necessariamente, para traduzi-la em sinal perceptível a cada cultura. Na medida, entretanto, em que a santidade se nutre da medula do Evangelho, ela é chamada a frutificar em todos os tempos, carrega uma mensagem que cada época deve decifrar para curar o mal que lhe é peculiar e
para discernir os carismas que lhe são próprios.
Não ignorais como a Regra escrita por São Bento apenas para alguns monges reunidos em torno dele conheceu, na Igreja latina, uma fecundidade excepcional e, até hoje, única, tanto no tempo como no espaço. Ainda hoje, muitos monges e monjas se inspiram diretamente nessa Regra e, graças a Deus, jovens continuam a nela reconhecer o atrativo que move seus corações.
Assim, os monges de todos os tempos constituem um comentário vivo da Regra e da mensagem de São Bento. Importa, no entanto, não se enganar quanto aos sinais que eles apresentam. Se os monges nunca faltaram à Igreja, não são, entretanto, imutáveis. O monaquismo comporta uma face externa que, de reforma em reforma, de renovação em renovação, ajusta-se continuamente aos imperativos variáveis de épocas que se sucedem sem nunca se assemelharem. Mas, sobretudo em sua graça interior, o monaquismo progressivamente assume matizes em harmonia com as correntes espirituais suscitadas pelo espírito na Igreja, que não podem deixar de se identificar e se reconhecer nele. Essa variedade das formas do monaquismo é sua riqueza, mas não deve ocultar sua verdadeira fisionomia. Assim, houve um monaquismo para eruditos e um monaquismo para simples; um monaquismo salvador da cultura e um monaquismo desbravador de terras; um monaquismo amante do esplendor litúrgico e um monaquismo cioso de despojamento em suas formas; um monaquismo voltado para o tesouro da interioridade contemplativa e um monaquismo de preferência interpelado pela missão e pelo serviço. Enganar-se de monaquismo seria expor-se a se enganar sobre São Bento, confundindo o que é de acréscimo, gratuitamente acrescentado por Deus, com o único necessário, buscado antes de tudo. Essas sucessivas maquilagens, se assim ouso dizer, que cumpre ultrapassar, constituem, porém, uma chance para os monges de hoje. Pois assim como houve um monaquismo para tempos de cristandade e para uma Igreja das catedrais e das cruzadas, também haverá hoje, e há um monaquismo para um tempo que se tornou secular, e para uma Igreja que se descobre serva e pobre, que tomou distância em relação a todo poder terrestre e sobre a qual o bom Papa João invocou uma nova efusão do Espírito Santo.
Agora, vou tentar decifrar a mensagem de São Bento para nosso tempo, convosco, em Igreja. Isto é, precisamente nesse lugar de secreta conivência e de harmonia, onde todos os carismas do povo de Deus jorram da opulência imprevisível e sempre tão surpreendente do Espírito Santo, e para o qual convergem, aí onde o povo de Deus se reconhece em seus monges e onde os monges percebem a si mesmos no coração do povo, solitários sim, mas solidários também ou, como dizia um monge célebre do século IV: “separados de todos, mas unidos a todos”.
Minha tentativa vai explorar, sucessiva e brevemente, cinco pistas:
1. Os monges são uma Igreja em contato com o deserto;
2. Os monges são uma Igreja à escuta de Deus;
3. Os monges são uma Igreja que reúne como irmãos;
4. Os monges são uma Igreja de pecadores e perdoados;
5. Os monges são uma Igreja que liberta o Espírito Santo.
I. Os monges são uma Igreja em contato com o deserto
Nenhuma dúvida existe, e nada poderia fazer com que fosse de outro modo: o primeiro passo que Bento ensaia, assim que Deus lhe acena, parece ser de recuo: resolutamente, ele volta as costas à cidade, seja ela Roma, coração da cristandade.
Deus o convida a abandonar, a deixar, a sair. Para ser capaz de reconhecer o desejo em que arde, para pertencer inteiramente a esse amor nascente que já é seu tormento, lhe é preciso iniciar um Êxodo, ir habitar no deserto. Seguindo casualmente o curso do Aniano, pequeno riacho à saída de Roma, Bento acaba por descobrir uma gruta, suspensa acima da aldeia de Subiaco, na qual se oculta, desconhecido dos homens, exceto de um monge que, do alto da falésia, lhe desce provisões, conhecido só de Deus, como diz Gregório: “Sob o olhar daSuprema Testemunha” (Diálogos, cap. 8).
Bento aí persevera durante três anos, subtraído aos olhos do mundo, oculto bem junto da face de Deus em uma terra ainda desconhecida para onde transplantou todas as suas forças vivas, a fim de que aí se enraízem, na terra do deserto que é terra de Deus. Fazendo isso, Bento encontra as fontes do Povo de Deus e as da Igreja. Em Abraão, chamado a uma vida nômade, em Moisés e no povo liberto do Egito, lançado nos caminhos de um interminável Êxodo, de deserto em deserto, o Povo de Deus progrediu através dos tempos. O deserto permanece gravado em sua memória, povoa suas recordações, anima seus projetos. A cada curva da História Sagrada, judeus são impelidos ao deserto para aí reviver a Páscoa e preparar a nova passagem. Jesus, por sua vez, irresistivelmente, no momento de iniciar sua missão, é conduzido pelo Espírito de Deus à solidão, como todos os seus Pais que sabiam que os caminhos de Deus são preparados no deserto e que aí são concebidos os frutos do Espírito.
Também a Igreja, ainda hoje, continua em contato com o deserto. Aí mergulha as suas raízes como em um solo de Deus, na terra materna do Êxodo e da Páscoa. Tem ela aí seus antecedentes, a partir dos quais pode operar. Não teme, em certos momentos, retirar-se para lá, recuando, aí acentuar distância, recolher-se aí para amadurecer as palavras que há de pronunciar à face dos homens, com tanto mais vigor quanto as tiver primeiramente ouvido da boca de Deus. Pode ela, então, parecer à margem, provocar estranheza, até mesmo suscitar ódio, esse ódio a que se refere o Evangelho e que lhe foi prometido por Jesus, por parte do mundo. Mas não poderia ela duvidar de que o lugar que lhe convém está ligado ao deserto dos Profetas e de Jesus, onde é continuamente convocada para tomar toda sua medida e consistência.
E, muito curiosamente, para aí reencontrar o mundo. Como São Bento, em cuja vida vai agora se estabelecer um contínuo vai-e-vem entre o deserto e a cidade. Bento parece fugir da cidade, mas, mal partiu para os confins do deserto, a cidade se apressa a deixar-se a si mesma para escapar até ele, buscando seus passos, mendigando-lhe uma palavra, reclamando por ele e por sua bênção.
O primeiro a descobrir Bento em sua gruta foi um sacerdote. Ele estava não em busca de solidão, mas como enviado expressamente, diz Gregório, por um anjo. Era um dia de Páscoa e Deus quis assim lhe proporcionar uma refeição festiva conveniente. A narração não carece de encanto e humor. Pois São Bento, o primeiro beneditino que já existiu, está tão longe de tudo, e até da santa liturgia, que ignora completamente ser Páscoa aquele dia. A saudação pascal do sacerdote, replica com uma palavra cuja candura só é comparável à extrema profundidade teologal: “Sim, é Páscoa, já que tenho a alegria de te ver”. (Diálogos; cap. 1). Eis o sinal de que Bento acaba de atingir o termo, de que seu deserto está para florescer. Na solidão, ele completou o grande ciclo pascal. Fez suas Páscoas com o Cristo, uma vez que na face do primeiro irmão que encontrou reconhece as primícias da ressurreição e do mundo novo: “Sim, Irmão, é mesmo Páscoa, já que tenho a alegria de te ver”.
Doravante se inicia um caminho inverso. Em breve, o povo se acotovela no limiar do deserto de Bento. Depois do sacerdote, os pobres pastores da região, sempre os primeiros a recolher a boa nova, depois outros leigos, irmãos que se põe à sua escola e grandes deste mundo cuja crueldade se pacifica vendo o Homem de Deus. O lugar habitado por São Bento, precisa Gregório, “era como um fermento que aquecia toda a região no amor de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo” (Diálogos, cap. 8).
Teria Bento, então, voltado ao mundo? Ou o mundo se teria retirado ao deserto? Agora, semelhante questão não se coloca mais em termos de oposição. No Homem de Deus, o deserto e o mundo coincidem em determinado ponto: e é realmente na Igreja. A Igreja é enviada ao mundo e, no entanto, não pertence ao mundo; ela está diante do mundo, mas está sempre firmemente em contato com o deserto. É também no deserto que Bento reencontrará o mundo, na famosa visão narrada por São Gregório. Certa manhã, antecipando a hora das Vigílias, silencioso vigia face a Deus e face ao mundo, viu uma estranha luz envolvê-lo e, dentro dessa luz, o mundo inteiro concentrado em um único raio de sol (Diálogos, cap. 35). O mundo dentro da luz de Deus, essa é a mensagem que Bento e a Igreja não cessam de proclamar.
Qualquer outra mensagem seria apenas acréscimo. Mesmo que muito mais tarde, na longa sobrevivência de Bento, os povos cristãos da Europa nascente o celebram como seu pai e patrono, essa vocação política, na verdade vocação muito tardia, constitui, um cêntuplo tão inesperado quão surpreendente. E, no entanto, muito significativo, na medida em que atesta, mais uma vez, que o verdadeiro Homem de Deus está próximo de seu povo e facilmente é por ele reconhecido.
II. Os monges são uma Igreja à escuta de Deus
Por que atrai Deus sua Igreja ao deserto? Quer seduzi-la, diz-nos o Profeta Oséias, como se seduz a mulher que se ama, e levá-la ao deserto para falar a seu coração (Os 2,16). O deserto é um lugar para os que se amam.
E, quando se ama, como não o comunicar um ao outro? Mas, as palavras de amor entre criaturas humanas são lentas, hesitantes. Por longo tempo balbuciamos, como que envolvidos pela ternura e, ao mesmo tempo, por estranho temor, duvidando nos fazer compreender. Entre Deus e nós, o diálogo não é mais fácil. Por isso não seja. Não nos cabe começá-lo. Ele mesmo nos antecipa. Sua palavra de amor desembaraçará nosso coração, despertá-lo-á do sono, feri-lo-á por um sentimento simultaneamente dê doçura e de dor. Sete vezes ao dia e uma vez à noite, os monges infatigavelmente se redizem essas palavras nos salmos, escutam-nas nas leituras que, no conjunto, constituem a trama do Ofício Divino. Um dia, eles perceberão dentro de si mesmos um outro murmúrio, o do Espírito Santo, com uma outra Palavra que devem, por sua vez, articular. A resposta ao amor de Deus lhes é assim como que dada antecipadamente por Ele, em sua Palavra e no coração deles.
Antecipadamente, é certo, mas não de imediato, o caminho da oração passa por uma espera, por uma incansável escuta – “ausculta, escuta, meu filho”, são as primeiras palavras da Regra – por uma paciência posta à prova. Também a oração, antes de se tornar jubilação, atravessa um deserto. O monge revive aí fraternalmente a travessia, a mesma da Igreja na história. O monge e a Igreja têm de atravessar um deserto onde Deus está ausente na aparência, mas que é o vestíbulo obrigatório de toda contemplação. No coração da história, a Igreja busca o sinal da passagem de Deus e seu dedo que a está sempre fazendo progredir. O monge, na profundidade de seu coração, está à espreita daquele poço onde todo ser humano se lança em Deus e de onde a oração brota e corre como da fonte.
A interioridade não é coisa que ocorra por si, nem a fé, nem a oração. Aparecem primeiro como uma noite cujo desenrolar seria inútil querer fazer. A Igreja e o contemplativo se defrontam com sua parte de ateísmo, ateísmo que não é exclusivo dos não-crentes, mas que cada um traz dolorosamente no fundo de si mesmo. Por mais estranho que isso possa parecer, antes de ser perito em coisas de Deus, o monge é perito em ateísmo. Ele se vê fraternalmente ao lado de todos os que duvidam e que não conseguem ainda se abandonar à doçura de Deus. Pois ele conhece por experiência o que é esse crisol da fé e como aí trabalha a mão de Deus, despojando-nos de todos os nossos ídolos. Somente à saída do crisol uma pequena luz começa a brilhar, um certo pressentimento do Deus único e verdadeiro, revelado na glória que ilumina a face do Senhor Jesus. No contemplativo a braços com a sua noite, é a Igreja que aceita a provação da fé em toda a sua amplidão e que, como pede São Bento a seu monge, “o coração pacífico abraça a paciência e persevera sem se fatigar nem recuar, já que diz a Escritura… fortalece teu coração e espera a Deus… e em outro lugar: em tudo isso, conseguimos a vitória por causa daquele que nos amou” (Regra, 7).
III. Os monges são uma Igreja que reúne como irmãos
De toda parte, vêm pessoas a Bento, e o Homem de Deus a ninguém recusa. O mosteiro é cidade pascal; acolhe todos os que, mesmo secretamente, se reconhecem nele. Mas, se a todos abre os braços, não os fecha sobre ninguém. Não se identifica a nenhuma nação, a nenhuma camada da sociedade, a nenhum setor da Igreja. Pretende ser universal, como tende a sê-lo o Homem novo em Jesus Cristo.
Com efeito, na vida de Bento, aparece toda espécie de gente, originária da sociedade cosmopolita, que foi o império decadente entregue a seus novos senhores bárbaros. As classes e os clãs são aí numerosos e bem marcados. Deixaram disso vestígios até na Regra de Bento, tida como devendo acolher a todos. O filho de nobre, que traz um rico dote ao mosteiro está aí ao lado da criança de origem pobre, recebida “por amor de Deus. Há patrícios livres e servos habituados a executar ordens; homens de letras e iletrados; clérigos e leigos; vocações de crianças e vocações mais velhas. Há, enfim, os de origem latina e os filhos convertidos dos antigos invasores, esses bárbaros mal latinizados, gaguejando com dificuldade uma língua gloriosa que eles contribuem para corromper. Ninguém é excluído, cada qual encontrará um lugar.
Com a condição de que esqueça seus antecedentes. Atravessando o limiar da casa de Deus que é o Mosteiro, rompe com a sociedade fortemente hierarquizada onde ocupava a posição que suas origens ou seu saber lhe haviam adquirido. Deve até apagar o nome que tinha o direito de trazer. São Bento é absolutamente estrito neste ponto. Nenhum monge será chamado por seu nome de outrora, esse nome civil em que bastava a forma ou a grafia para trair origens ilustres ou modestas, ou até estrangeiras: “Que o homem livre, precisa ainda São Bento, não seja colocado antes do que vem da escravidão… pois, escravos ou livres, somos todos um só corpo em Cristo” (Regra 2,18-20). Uma nova posição caberá a cada um: a da precedência na conversão ao Senhor. Um nome novo lhe e dado, apelativo evangélico e familiar ao mesmo tempo, impregnado de respeito e de ternura: Nonnus é, “vovozinho”, se for idoso; frater, irmão, se for mais jovem.
Novo pertencer a nova cidade, valeu isso aos monges de todos os tempos sua capacidade legendária – diga-se: seu carisma – de hospitalidade e de acolhimento.
Honorare omnes homines pede São Bento: prestar honra a todos os homens (Regra 4,8). Cada um é acolhido assim que bate à porta. Mal se deu a conhecer, o porteiro dá graças, exclamando: “Deo gratias!” E todos os irmãos, a começar pelo abade, precipitam-se para saudá-lo e para “honrar neles o Cristo, uma vez que é Ele que se recebe neles” (Regra, 53). Uma só exceção em favor: para os pobres e os peregrinos, “pois é neles sobretudo – comenta São Bento – que se recebe a Cristo”. E acrescenta, não sem um piscar de olhos e uma pitada de humor: “Quanto aos ricos, o temor que inspiram atraí por si as honras”.
Ser terra de acolhimento não é graça particular aos mosteiros; é a graça da Igreja quando ela se desprende dos entraves de parcialidade que a paralisam e que, às vezes, a dilaceram e, em todo caso, sempre desfiguram sua fisionomia e restringem sua capacidade de amor.
Quanto ao mosteiro de Bento, não poderia escolher. Se tal fosse preciso em uma Igreja dividida, o mosteiro constituiria instintivamente um no man’s land (terra de ninguém, ou de todos) do Espírito, onde todos se sabem respeitados, onde cada pobre é acolhido e nenhum rico é suspeitado, onde nenhum cartão de qualquer partido é exigido e nem se tornaria comprometedor, onde ninguém será recuperado a não ser para se perder em Jesus Cristo e ressuscitar como criatura nova. Assim, deveria ser o mosteiro terra ecumênica por excelência; ele pode provocar encontros e prefigurar comunhões que, em outros lugares, existem apenas em esperança. Recentemente, um teólogo ortodoxo, de passagem em um mosteiro francês, se surpreendia por haver descoberto um ponto ortodoxo em terra católica. Isto é só meia verdade. Onde quer que se encontre, um mosteiro não pertence, fundamentalmente, nem à ortodoxia, nem ao catolicismo, na medida em que estes se opõem ainda, provisoriamente. Já é ele sinal da Igreja indivisa – e, talvez, jamais separada – para a qual tão fortemente nos impele o Espírito hoje.
IV. Os monges são uma Igreja de pecadores perdoados
Bento acolhe, em primeiro lugar, os pobres e os peregrinos, aqueles que foram lançados nas estradas por uma graça de penitência. Essa preferência trai uma experiência pessoal. Ele se sente próximo dos que lutam e que caem, e que não têm outra força onde se apoiarem a não ser a de jamais desesperar da misericórdia de Deus.
“Jamais desesperar da misericórdia de Deus” (Regra 4,74) e, ao pé da letra, um dos mais importantes conselhos que Bento dá aos monges logo no início da sua Regra. Sem dúvida, ele sabe do que está falando, e quer baixar o entusiasmo dos recrutas falsamente atraídos por algum sublime ideal de sobre-humana perfeição. O monge nada tem de um super-homem. Nem sequer é um justo, um daqueles para os quais Jesus não veio. Ele se coloca entre os pecadores e deve aprender a necessidade que tem de misericórdia, como qualquer um.
A tentação de substituir a busca da Face de Deus por uma perspectiva moral, soberba e exigente, é de todos os tempos, mesmo do nosso em que, talvez legitimamente fatigados com a aspereza de uma luta que se diz ascética, mas no fundo é paga, para a conquista de alguma virtude de alto voo, corremos o risco de usar a mesma generosidade demasiadamente natural em outras lutas igualmente paralelas.
De sua própria fraqueza, Bento fizera dolorosa experiência, em seus primeiros anos de solidão quando, tentado pela carne – cito literalmente São Gregório –“Já cogitava deixar o deserto, vencido pelo desejo; mas, de repente foi favorecido pela graça divina e ele volta a si” (Diálogos, cap. 2). Desse quase-fracasso, dessa meia vitória em que, não ele, mas a graça de Deus acabara por triunfar em sua fraqueza, Bento guardará a lembrança. O monge de sua Regra será um homem de coração contrito e humilhado, mas exultando sempre por causa da misericórdia. Ao Abade, levado a corrigir seus irmãos, recomendará que se lembre de sua própria fragilidade; que faça prevalecer sempre a misericórdia sobre a justiça, a fim de também ele merecer um dia ser tratado do mesmo modo; que tudo disponha, na vida dos irmãos, para que os mais fracos não desanimem; que acorra a toda necessidade, aos enfermos, aos velhos, mas sobretudo em busca da ovelha perdida, dos pecadores e dos delinquentes que nunca faltam numa comunidade segundo o Evangelho.
De fato, o lugar do pecador no mosteiro é, verdadeiramente, surpreendente. Mesmo quando lhe é aplicado um real rigor, é palavra de amor. Mesmo quando excluído do oratório e da mesa, ocupa um lugar privilegiado para onde se voltam os olhares e os corações, assim como a oração de todos os irmãos, para que aí se renovem as maravilhas da misericórdia, para que a ferida de um só valha a todos um milagre.
Só então o monge de Bento chega ao termo. A escada de perfeição que Bento quis erguer em sua Regra é uma escada de humildade e de abaixamento. Sobe-se por ela, observa ele com finura, descendo, e seu cume é um abismo de arrependimento. O ícone do monge perfeito é reconhecido por São Bento no publicano do Evangelho, sacramento de humildade esse homem que repetia continuamente no seu íntimo, com os olhos fixos no chão: “Senhor, eu não sou digno, eu pecador, de erguer os olhos para o céu” (Regra 7,65).
Menos preocupado em enfeitar alguém de justo irrepreensível, ou de determinar com ansiedade onde começa e onde termina o pecado, Bento anuncia em primeiro lugar o que o Evangelho proclamava: que o pecado, seja qual for, é perdoado, e que este perdão está à disposição de qualquer pecador, contanto que aceite abaixar-se diante da porta estreita e baixa do arrependimento.
Em uma Igreja solicitada, de um lado pelos últimos assaltos de uma falsa culpabilidade, e de outro pelas tentativas ainda inábeis para disso se libertar, Bento oferece a graça do verdadeiro arrependimento evangélico. Não dissimula o pecado, mas sente ternura pelo pecador: “odiar os vícios, amar os irmãos”, recomenda ele ao Abade (Regra 64,11). Acolhe o pecador e o restaura no perdão criador de Deus. Arrependimento e perdão são as duas faces da força libertadora que um dia se haverá de dizer ser a única terapia eficaz, porque divina, para as distorções de nossas psicologias e a desorientação de nossas sociedades.
V. Os monges são uma Igreja que liberta no Espírito Santo
O arrependimento é o primeiro fruto da vida nova deposta em nossos corações e chamada a se desenvolver na força do Espírito Santo. Ele é mesmo um sinal certo de que o Espírito já está aí presente. Bento, o Homem de Deus, foi também o homem do Espírito – pneumatikos spiritualis – o verdadeiro espiritual, em contato com o sopro de Deus e apto a insuflá-lo em outros.
A experiência monástica, para além das instituições e da observância que tendem sempre a enrijecer, é, antes de tudo, transmissão dessa vida. E mistério de paternidade e de maternidade, de geração e de nascimento. Semeia ela corpos e corações para Deus; fecha, cresce, cria raiz, brota, eleva a haste, desabrocha, dá flores e, mais tarde, frutos em abundância. Pois recebe de dentro de si um impulso secreto que lhe vem da vida de Deus, do sopro criador, do Espírito Santo que a acompanha continuamente, vela, torna-se pouco a pouco sensível ao coração. Finalmente, essa doçura do Espírito ensina em tudo ó monge, ajuda-o a discernir, torna-se seu guia único e sua única Regra, Regra viva e interior, inscrita em seu coração que se tornou coração de carne, isto é, vulnerável e maleável à mão de Deus.
“E onde está o Espírito de Deus está a liberdade” (2Cor 3,17). O monge de São Bento, a exemplo de seu pai, torna-se um homem disponível e doado. Homem de Deus – Vir Dei pela obediência a toda palavra de Deus – Verbum Dei deixa ele que o Espírito complete em si a obra de Deus – Opus Dei – no coração da Igreja de hoje; obra que é indissoluvelmente confissão e louvor, intercessão e serviço fraterno em um amor humilde e sincero.
Em preparação ao Ano de São Bento, um vasto inquérito foi lançado aos monges e monjas do mundo inteiro, pedindo-lhes que indicassem os valores da Regra de São Bento que mais houvessem marcado suas vidas. Na França, uma das respostas mais comoventes se resumia numa só frase, traçada com mão fatigada e trêmula. Embaixo da folha, uma outra mão mais jovem acrescentara: “Esta resposta foi escrita por nosso Padre X, alguns dias antes de morrer, na idade de 92 anos”. A resposta indicava duas curtas passagens da Regra: “o fim do Prólogo e o fim do capítulo VII”.
Permiti-me, à guisa de conclusão, unir minha voz ao testemunho desse velho monge, venerável e muito amado, que desse modo quis prestar homenagem a São Bento e, ao mesmo tempo, ao Espírito Santo.
As duas passagens descrevem sobriamente, mas com precisão, o momento exato da experiência monástica em que, graças àquilo a que damos hoje o nome de choque carismático, isto é, uma intervenção particular do Espírito Santo, nossas vidas, comumente tão confinadas e laboriosas na carne, subitamente passam a balouçar na maravilhosa liberdade e leveza dos filhos de Deus:
“À medida que se avança na vida monástica e na fé, o coração
se dilata e, na indizível doçura do amor, corre-se no caminho
dos ensinamentos divinos…” (Prólogo, v. 49).
Com efeito, diz São Bento na segunda passagem: “uma vez galgados todos esses degraus de humildade, o monge chegará rapidamente a essa caridade de Deus que, perfeita, expulsa o temor. Por ela, tudo o que antes ele observava não sem apreensão, começa agora a guardar, sem nenhum esforço, como que naturalmente e por hábito, não mais por pavor do inferno, mas por amor a Cristo, por hábito adquirido e alegria da virtude. Eis o que o Senhor se dignará manifestar, pelo Espírito Santo, em seu “operário” (Regra, 7) pecador agora perdoado e restaurado em sua luz.
Esta é a palavra de São Bento, palavra do Evangelho para todos os tempos. Sua luz ilumina o crepúsculo do segundo milênio e anuncia a aurora do terceiro, cujo frêmito pressentimos em nossos corações inquietos, é certo, mas – e tomo uma última palavra de São Bento – “jamais desesperando da misericórdia de Deus” (Regra 4,74).